Complexo romano do Creiro | Portinho da Arrábida

Complexo de cetárias implantado na encosta da Praia do Creiro/Portinho da Arrábida (Setúbal/São Lourenço), entre Tróia/Setúbal e Sesimbra. O sítio arqueológico foi escavado em 1987 sob a direcção de Carlos Tavares da Silva. A fábrica de salga apresenta planta rectangular, com 13 m de comprimento (direcção ENE-WSW) e 4,6 e 4,8 de largura. Foi completamente murada e possui onze tanques e um pátio que abre para o exterior, a sul. Apresenta uma abertura de 1,4 m no lado sul, servida por soleira formada por dois grandes blocos de calcário conquífero com pequeno degrau frustamente talhado. É admissível acreditar na construção desta fábrica em meados/terceiro quartel do século I d.C. funcionando até cerca dos finais do mesmo século. Voltou a ser ocupada durante o século IV, inícios do século V e depois mais tarde, durante o século XII, com a presença de materiais marcadamente islâmicos - Base de Dados Endovélico


Opus signinum
Complexo termal
Frigidarium com vestígios de revestimento de mármore
Condutas de água

Ruínas Romanas de Tróia


A conserva por salga de peixe e a produção de garum constituíram, certamente, uma das indústrias mais activas do Portugal romano, particularmente nos estuários do Sado e Tejo, Sines e Pessegueiro e na costa algarvia. A larga produção e raio de circulação do garum produzido na Lusitania “portuguesa” foram comprovados por uma ânfora encontrada em Vindolanda, na Muralha de Adriano (Inglaterra), e por alguns exemplares de tipo Dressel 14 verificados nos naufrágios de Cap Bénat e Conillera, em Ibiza (Alarcão, 1988).
Estendendo-se ao longo de quase 2 km de areal, pela margem esquerda do rio Sado, surge a estação de Tróia, um dos mais produtivos e interessantes centros de conserva de peixe do Mediterrâneo Ocidental. É provável que, em época romana, Tróia fosse uma península de área mais reduzida ou mesmo uma ilha do delta estuarino do rio Sado, conforme parece sugerir Avieno – “Ilha de Acála” (ainda não é conhecida a origem toponímica de “Tróia”). A fixação de tão importante complexo industrial na área da foz do Sado prendeu-se, naturalmente, com a abundância, qualidade e diversidade dos recursos marinhos aí disponíveis.
Desde logo, há que ter em conta que o rio Sado constituiu, até ao recente advento do caminho-de-ferro, a principal e mais efectiva via de comunicação entre as duas margens e entre uma série de comunidades e actividades ribeirinhas, unindo a terra e o mar, o interior e o litoral. Também é de sublinhar que actividades como a construção naval, a pesca, a salicultura e a industria conserveira tiveram, até aos nossos dias, uma importância vital no ritmo evolucional e no desenvolvimento da cidade de Setúbal, definindo o "cunho genético", cultural e social das populações que têm partilhado este complexo hidrográfico.
O complexo industrial de Tróia terá começado a laborar já numa fase de estabilidade do processo de ocupação romana, provavelmente durante a dinastia dos Júlios-Cláudios (inícios do séc. I d.C.). O seu abandono verificou-se por volta do século VI d.C., encontrando-se já em irreversível decadência a partir do séc. IV. A desagregação do império levou à progressiva deterioração das rotas comerciais e dos mercados consumidores – o processo de ocupação de Tróia está intimamente associado à própria história política do Império Romano.

Tróia não foi um ponto isolado no Ocidente europeu, na verdade, este centro conserveiro fazia parte de uma complexa cadeia comercial que, centrada no Mar Mediterrâneo (Mare Nostrum), garantiu o fornecimento de produtos e iguarias do mar a todos os grandes núcleos populacionais do Império, incluindo a própria cidade de Roma.

Na margem direita do Sado, a montante e a jusante de Setúbal, entre a Mitrena e o Portinho da Arrábida respectivamente (passando ainda por Sesimbra), são numerosos os vestígios identificados de cetárias . Os tanques de salmora, designados de “cetárias”, são estruturas impermeabilizadas com opus signinum – argamassa de revestimento à base de cal e inertes (areia, cascalho e cerâmica triturada) – o mesmo revestimento utilizado nas piscinas e arquitecturas termais.

Falamos de cubas/tanques de forma rectangular ou quadrangular, de diferentes tamanhos e agrupados contiguamente, mas sem comunicação, em núcleos independentes, separados por muros de alvenaria que possuíam, em alguns casos, pilares de secção transversal quadrangular que suportariam uma cobertura de telha destinada à protecção dos conteúdos em maceração. Destinadas à salga de peixe e de preparados piscícolas (garum), as cetárias do Sado eram construídas em calcários, brecha, grés e conglomerado vermelho do Alto Viso. As arestas eram boleadas para facilitar a limpeza dos tanques.

As cetárias destinavam-se a conter peixes, bivalves e crustáceos, obtidos no rio ou trazidos do alto mar. Eram então lavados e separados segundo as espécies e por fim salgados. As vísceras, devidamente seleccionadas, a que eram adicionadas ervas aromáticas de diferente natureza, sofriam um tratamento de maceração e fermentação, delas se obtendo o garum, espécie de pasta ou molho que servia para condimentar os alimentos. Acondicionado em ânforas ou em vasilhas de menores dimensões, era exportado para os diversos centros de consumo do mundo romano, onde era altamente apreciado, chegando, por vezes, a atingir preços exorbitantes. Para a manutenção e limpeza dos tanques associavam-se poços de água doce de boca circular.

De referir, no registo arqueológico, uma submersão de parte das estruturas de Tróia, aparentemente motivada por um fenómeno de transgressão marinha (fenómeno inicial de afundamento seguido de levantamento já com sedimentos), provavelmente associado a vagas sísmicas e à acção erosiva do próprio Sado.
As ruínas do agregado populacional de Tróia compreendem uma área habitacional com algumas domus, aparentando alguma sumptuosidade bem patente nos mosaicos em opus vermiculatum e estuques com pintura a fresco. A “villa” industrial era servida por um balneário com vestibulum, frigidarium, tepidarium e caldarium sobre hipocaustum, piscinas e sala de ginástica.
Foram identificadas quatro áreas de enterramento: sepulturas sobrepostas numa altura de 7 m na margem da Caldeira (lagoa interior); a sepultura de incineração de Galla; um mausoléu de planta quadrada com nichos abertos nas paredes para guardar urnas cinerárias; sepulturas de superstrutura quadrangular.
O culto tinha lugar num núcleo religioso sedeado na basílica paleo-cristã de quatro naves, com vestígios de 8 bases de colunas e de arranques de arcadas transversais. Paredes estucadas e pintadas com frescos, marmoreados, elementos geométricos e emblemáticos. Do baptistério, documentado por Inácio Marques da Costa, já nada resta nos dias de hoje. De acrescentar, ainda, um columbário.
A história do Sado e de Setúbal está desde sempre intimamente associada à produção de sal. Um estuário que reúne um conjunto de características de excepcional qualidade para a produção deste bem essencial. Uma baia atlântica que associa a qualidade e pureza das suas águas a um óptimo clima mediterrâneo, condições essenciais para uma correcta cristalização desta iguaria.

Além da vital função, o sal é essencial para actividades como a conservação de bens alimentares, produção de queijo e tratamento de peles. A abordagem arqueológica desta actividade esporádica é muito difícil, falamos de estruturas construídas em materiais perecíveis que ocupam zonas estuarinas de grande dinâmica de correntes e marés e que pouco após a sua exploração desaparecem praticamente sem deixar vestígios para o registo arqueológico.

A riqueza e diversidade dos recursos piscícolas do estuário do Sado e da sua frente atlântica, bem como a sua consequente exploração, encontram-se bem comprovadas no registo arqueológico, nomeadamente pela ocorrência de arpões e anzóis de bronze, utilizados em artes piscatórias. Entre os anzóis predominam os de patilha e farpa de grandes dimensões, naturalmente adequados à captura de espécies de profundidade, tanto numa pesca de linha como de espinel (aparelho). Além destes, de referir a ocorrência de agulhas de coser redes, cepos de âncora, âncoras líticas e pesos de rede em barro.


Mó circular
Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge – O Domínio Romano em Portugal – Lisboa, 1988
COSTA, A. Marques da – Estudos sobre algumas estações da época luso-romana nos arredores de Setúbal – in O Arqueólogo Português, vol. 26, Lisboa, 1924; vol. 27, Lisboa, 1929; vol. 29, Lisboa, 1933
MAYET, Françoise; SILVA, Carlos Tavares da – Fenícios e Romanos no vale do Sado – Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal/Assembleia Distrital de Setúbal, 2005
SILVA, Carlos Manuel Lindo Tavares da; CABRITA, Mateus Gonçalves – O problema da destruição da povoação romana de Tróia de Setúbal – in Revista de Guimarães, vol. 76, Guimarães, 1966.
SILVA, Carlos Manuel Lindo Tavares da; SOARES, Joaquina – Arqueologia da Arrábida – Parques Naturais, Lisboa: Serviço Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza, 1986.
SOARES, Joaquina – Estação romana de Tróia – Grândola, 1980.