do MAGMA às ESTRELAS



Do magma às estrelas: elogio das coisas simples e antigas


por Manuel Calado


Fogo, ar, água, terra; terra, água, ar, fogo.


A cerâmica foi o primeiro material sintético usado pela humanidade. A transmutação dos elementos, uma forma eficaz de magia; o domínio da matéria pelo espírito.

Os primeiros potes foram os arquétipos dos caldeirões mágicos do nosso velho imaginário, os potes onde eram manipuladas as potiones; nos seus ventres bojudos, grávidos, os alimentos eram transmutados pelo fogo, pelo ar, pela água e pelo tempo.

Era nesses caldeirões mágicos que nasciam as bebidas sagradas, catalizadores privilegiados das viagens extáticas aos mundos dos deuses e dos antepassados.

Os potes, como obras exclusivamente humanas, tornaram-se, em muitas culturas, metáforas privilegiadas do próprio homem.

Materiais transformados pelo Homem e que serviam para transformar os alimentos, preparando-os para, no corpo humano, participarem nessa misteriosa alquimia de transformar a matéria no fogo dos sonhos.

Foram, mais tarde, as matrizes dos crisóis. O metal nasce na terra e manifesta-se através do fogo, em peças de cerâmica. Hierofanias.
A cerâmica neolítica era uma ferramenta de magia criada por artes mágicas. Era, por isso, certamente, um meio de expressão artística.

A forma dos objetos era já, só por si, uma manifestação de criatividade, carregada de significados e evocações. Mas, além disso, devido à sua plasticidade, a cerâmica era um suporte particularmente apto para receber grafismos.

A cerâmica, nesse sentido, era equivalente à arte rupestre.

E a cerâmica não é só escultura: desde as suas origens mais remotas, a gravura e a pintura fazem parte dela.

Sara Navarro percorreu um longo caminho: recuou 7000 anos até ao tempo em que a cerâmica era uma tecnologia de ponta. Uma conquista tecnológica. Partindo de uma realidade perdida, de que apenas podemos suspeitar os contornos, ela propôs-se transfigurar os potes, reencontrando, nesse processo, em que o presente e o passado se interpenetram, as emoções perdidas do protagonismo da terra.

Criando corpos inusitados, repensados, reinventando, num quadro novo, as velhas novidades neolíticas. Objetos arquetípicos, reconhecíveis, mas depurados das antigas funcionalidades e simbologias.

Corpos adâmicos, sensuais. Recuperando essa ligação quase perdida às matérias primordiais e eternas. Objetos femininos, ventres búdicos. Redondos como o Sol e a Lua. Eróticos. Maternais. Mamilados. Umbilicados. Objetos de desejo. Macios. Lembrando um tempo de presumida inocência. Lúdico.

‘Arte-factos’. Com significados sempre múltiplos, com sentidos construídos e reconstruídos...