A Gruta do Médico localiza-se na meia encosta do Monte Abraão, no topo do qual se elevam as iconográficas três cruzes da Arrábida, na vertente norte do Vale do Solitário (mata coberta) e em pleno “coração” da Serra da Arrábida (Setúbal). A entrada vertical é feita por uma estreita abertura no chão do seu átrio de entrada, por onde se desce cerca de 3 metros. Desenvolve-se na cota dos 210 metros, em unidades sedimentares do Jurássico, seguindo uma progressão semivertical, de orientação oeste-este, com um desnível de cerca de 21 metros de profundidade. O desenvolvimento dá-se ao longo de uma junta de estratificação, organizada em galerias sobrepostas em três patamares, ricas em fenómenos de concrecionamento, numa área total de aproximadamente de 174 m².
Terá sido descoberta por um pastor por volta de 1856, sendo referida, pela primeira vez, nofolhetim Gazeta Setubalense nº 218, de 27 de Junho de 1873, por Manuel Maria Portela, onde se pode ler: «El logar eminente, e não distante do vale que chamam da Mata Coberta, por ser de espessura impenetrável aos raios de sol, vêm-se ainda os restos da parede que resguardam o concavo da rocha onde habitou um médico, do qual a tradição nos refere apenas que foi notável pelos seus conhecimentos científicos, e que ali se recolheu, depois de haver percorrido vários países em dilatadas viagens». Em 1897, Joaquim Rasteiro publica uma breve descrição da cavidade no Arqueólogo Português: «a lapa do Médico, na meia encosta do monte Abraão, á esquerda do caminho que vae da fonte do Solitário para o mosteiro pelo valle de S. Paulo. Tinha formosas estalactites e estalagmites, que foram destruidas na maioria pelos visitadores. A parte superior foi habitação de um cenobita; o subterrâneo foi descoberto ahi por 1850 devido á queda de uma pedra, que fechava a entrada» (Rasteiro, 1897, p. 3).
O átrio de entrada ainda conserva vestígios de uma antiga construção adossada à rocha (a estrutura de pedra seca das ombreiras da porta e os arranques de uma cobertura alpendrada), provavelmente de função religiosa, tendo em conta a proximidade da lapa-capela de Santa Margarida e do Convento da Arrábida e por ali passar um secular caminho que o liga ao ermitério de El Cármen. De assinalar, também, a proximidade ao Portinho e à Serra da Cela, a cerca de 1 km.
Em recentes visitas ao local, no âmbito da Carta Arqueológica de Setúbal, foi possível registar, além de diversos vestígios de época medieval/moderna, e de alguns fragmentos de sílex talhado, dois fragmentos de cerâmica negra brunida, não ornatados, e que apesar de não proporcionarem colagem, parecem corresponder ao mesmo recipiente. Curiosamente, estes fragmentos encontravam-se bastante distanciados entre si: um no interior da cavidade, em excelente estado de conservação; o outro no exterior, mais erodido, mas que pelo facto de ainda conservar brunimento e brilho supõe uma mobilização relativamente recente. Recorde-se, para o efeito, que a referida cavidade, embora nunca tenha sido alvo de estudos arqueológicos, é bem conhecida localmente, recebendo frequentes visitas, nem sempre de visitantes com sensibilidade arqueológica e espeleológica. Além destes dois exemplares brunidos, foram observados outros fragmentos de cerâmica manual, designadamente um fundo plano.
No interior da gruta, na base da entrada vertical, abre-se um estreito recanto, colmatado por dejecções sedimentares que o preenchem quase na totalidade. Depois de um apertado rastejamento, foi identificado um fragmento de cerâmica manual (bordo simples), associado a duas vértebras (lombares) e alguns dentes humanos. Estes achados constituem um forte indício de uma necrópole, que tendo em conta o registo artefactual associado e os arqueossítios da envolvente, poderá pertencer ao Bronze Final. A utilização desta cavidade enquanto gruta-santuário também fica em aberto, podendo tratar-se de um caso de dupla função: necrópole e santuário rupestre.
A Arrábida no Bronze Final - a Paisagem e o Homem
Ricardo Soares
(2012)
Dissertação de Mestrado em Arqueologia
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Fotografia de Ricardo Soares & Sara Navarro