Navegando em “Mares de Bronze” – o “síndrome do marinheiro”

São maus descobridores os que pensam que não existe terra porque só podem ver o mar
Francis Bacon, O Progresso do Conhecimento

Desde a noite dos tempos que o homem se perdeu na água,
porque ela é, por definição, alimento, fonte de subsistência e desafio à separação.
Isto é, campo e estrada – o barco ou o navio sendo, mais do que metaforicamente, o arado do mar
Francisco Alves

O meio aquático constitui um verdadeiro paradoxo cultural e ambiental. Ainda hoje, numa época de navegação global, o espaço aquático é tido como uma imponderável barreira física, um ambiente não controlado e pleno de surpresas, perigos e tragédias. No Passado, o alcance deste sentimento seria exponencialmente superior, todavia, rios, lagos e mares significaram uma potencial via de comunicação e de aproximação entre as sociedades, ao invés de as dividir.
O acto pelo qual o Homem se “fez ao mar” constituiu um verdadeiro exercício de selecção cultural, um empreendimento de recursos que não se esgotou, tão-somente, na construção de uma embarcação adequada a um determinado objectivo. O advento e evolução da navegação inspirou-se e repercutiu-se na subsistência, na indústria, no comércio ou na guerra, produzindo uma variedade de materiais e artefactos altamente específicos desta empresa – cultura material especializada. O grau de especialização é também variável ao longo do tempo e conforme as culturas.
Para aferir o verdadeiro alcance e importância das navegações, em cada época e sociedade, o registo arqueológico tem vindo a revelar indubitáveis provas destas actividades, particularmente relativas às primeiras grandes viagens marítimas, verdadeiras pontes tecnológicas onde o contacto terrestre era, por vezes, fisicamente impraticável. Neste ponto, além das matérias-primas, dos artefactos (e/ou dos seus modelos) e dos seus circuitos de circulação, há que considerar, em definitivo, os homens que os transportavam – os marinheiros, os verdadeiros interlocutores deste processo de contacto e comunicação que foi muito além dos bens materiais, promovendo o trânsito de um amplo pacote de impulsos e influxos: mentais, culturais, tecnológicos e genéticos.
Desde cedo, as primárias actividades piscatórias foram dando entrada no registo arqueológico, indirectamente pelos indícios de consumo alimentar, pela descoberta de raras embarcações e, sobretudo, de artefactos como pesos de rede e poitas, arpões e anzóis. Estes últimos, inicialmente simples, talhados em osso, madeira ou conchas, tornaram-se progressivamente mais sofisticados, designadamente com o recurso a materiais metálicos.
Relativamente às embarcações, estas implicam estruturas projectadas e construídas para resistir a forças muito mais complexas do que os transportes terrestres. Neste sentido, os métodos e as técnicas de construção naval representam, muitas vezes, a vanguarda tecnológica de uma sociedade, tão simplesmente pelo facto de não haver paralelo para tão grande exigência criativa – veja-se os casos fenício e grego.
Enquanto cultura material especializada, as embarcações constituem uma copiosa fonte informativa acerca das sociedades que as produziram, enquanto a construção naval implica uma complexa actividade social que envolve desenvolvimento, organização, cooperação e investimento no longo prazo. Por outro lado, as embarcações também devem ser consideradas enquanto “símbolos”, transmissores por excelência de ideologias e expressões sociais, incluindo a tradição dentro da qual foram construídas.
A génese e evolução tipológica das embarcações e das respectivas técnicas de construção e de navegação dependeram, na maior parte dos casos, dos condicionalismos geográficos e ambientais, dos recursos disponíveis, do grau de evolução técnica e económica das sociedades e do fim a que se destinavam. A transição da utilização de barcos de pesca para barcos de transporte e comunicação foi, muito provavelmente, um passo natural de um longo devir que se manifesta até à actualidade.
Em âmbitos mediterrâneos, nos finais da Idade do Bronze e na Idade do Ferro, a navegação de cabotagem era seguramente complementada por uma “regular” navegação de “alto-mar”, implicando mareações nocturnas, realidades comprovadas, por exemplo, pela presença fenícia nas ilhas de Sicília, Sardenha e Ibiza – “de facto, tanto Hesíodo como Homero descrevem viagens de vários dias sem escalas intermédias e, mais tarde, Estrabão menciona que no Mediterrâneo se navegava no mar alto” (Arruda, 1999-2000, p. 27). Relativamente à navegação nocturna, além das referências luminosas em terra (faróis) e da iluminação das próprias embarcações, é justo recordar que os fenícios já conheciam a Ursa Maior, recorrendo naturalmente à Estrela Polar nas suas viagens (Arruda, 1999-2000, p. 27), pelo que os gregos conheciam esta estrela por “Kochab” – a estrela fenícia (Arruda e Vilaça, 2006, p. 36).
Contudo, a exposta costa atlântica, recortada ao longo da fachada ocidental da Península Ibérica, reúne características bem diferenciadas dos mares interiores do Mediterrâneo. Em Portugal, as actuais condições do ambiente marítimo não serão muito diferentes das verificadas em tempos mais remotos. Hoje, regista-se uma considerável agitação marítima, com uma predominância dos quadrantes norte-noroeste, que a sul do Cabo Espichel, durante 70% do ano, produz uma ondulação média na ordem de 1 m de altura, atingindo cerca de 4 m durante 2% do ano.
Quanto aos ventos, no presente predomina a “nortada”, ou seja, um regime de ventos que sopram do quadrante norte-noroeste, particularmente intensos a partir do fim da tarde, amainando de madrugada, tanto no Inverno como no Verão, sendo especialmente intensos na zona dos cabos (Carvoeiro, Roca, Espichel e São Vicente). No Inverno, pela influência dos sistemas frontais, sentem-se as rajadas de sudoeste. As correntes, na actualidade, correm predominantemente de norte para sul, com velocidades médias na ordem dos 0.2-0.5 nós, não afectando significativamente a navegação, sendo que, na desembocadura do Tejo e do Sado, as correntes variam com a influência das marés. As condições de visibilidade na navegação são muito condicionadas pelas neblinas de condensação das madrugadas e manhãs de Verão, dissipando-se com o gradual calor do dia (Arruda, 1999-2000, p. 23-25).
Todavia, parte destas genéricas condições pode ter sido desigual durante a Pré e a Proto-História, tendo em conta a natural evolução e as transformações climáticas, designadamente a provável diminuição no efeito de upwelling costeiro, traduzida na não existência de um regime de “nortada” e em diferenças nas correntes marítimas (Soares, 1997).
Assim, se o Mediterrâneo facilitou uma navegação “motrizada” por velas e remos, já os vigorosos mares do Norte e Atlântico implicaram, sobretudo, uma navegação à vista, de cabotagem larga (Arruda e Vilaça, 2006, p. 35-36), onde a vela terá assumido uma preponderância vital. Porém, na costa ocidental da Península, considerando a predominância dos ventos do quadrante norte durante praticamente todo o ano, a navegação à vela (panos quadrangulares) apenas é beneficiada nas rotas provenientes de norte. Recorde-se que, só com o advento da bolineira vela triangular (latina) se tornou possível navegar contra o vento – mareações em bordos diagonais (“bolinas”) que afrontam os ventos até perto dos 12º, ou com “largos” laterais, perpendiculares à linha proa-popa. Assim, a propulsão combinada de velas e remos seria obrigatória na navegação em épocas proto-históricas, sobretudo nas rotas provenientes de sul, contudo extremamente beneficiadas no trajecto de retorno.
Em zonas estuarinas e ribeirinhas, além das correntes, as embarcações (de baixo calado, monóxilas e jangadas), moviam-se por meio de remos, pagaias, varas e pela sirga – técnica de reboque de uma embarcação por meio de cabos puxados das margens, através da força de homens e/ou animais.
A informação relativa às navegações proto-históricas, sobretudo de origens mediterrâneas, aos seus promotores e às suas progressivas manifestações em paisagens ibéricas, fundamentou-se, à partida, nas fontes clássicas – Hesíodo, Homero, Heródoto, Avieno, entre outros. Ulteriormente, estes residuais ecos bibliográficos foram complementados por abordagens toponímico-etimológicas e, em parte, confirmados pela Arqueologia, materializando-os pela exumação de vestígios físicos. Todavia, os dados arqueológicos coligidos são na globalidade escassos e insuficientes para compreender a real dimensão e alcance social destas manifestações náuticas.
Acresce o facto de a tradição arqueológica, dita “terrestre”, não considerar, geralmente, a influência dos marinheiros nas trocas de longa distância, sobretudo de produtos de prestígio, e na disseminação de conceitos intelectuais, sendo que, os homens do mar constituem, em boa verdade, os directos responsáveis por esses processos.
Por outro lado, há que considerar, em definitivo, o estudo da paisagem marítima (seascape), ou seja, paisagem de mar e costa, associando a navegação marítima à arqueologia da paisagem, no sentido de compreender como é que o mar foi apercebido a partir de terra e vice-versa – a paisagem marítima como um conceito ideológico.
Além da carência de uma investigação sistemática e dirigida, particularmente lacunar no caso português, pesa a natureza de curta preservação no tempo e no espaço dos materiais empregues nestas actividades: madeiras, cordame de fibras vegetais entrançadas, barro, musgo prensado, peles, ossos, bexigas de animais, têxteis, etc. Contudo, as mesmas forças ambientais que causam uma constante sequência de perdas no registo arqueológico, conjuram-se muitas vezes para preservá-lo em condições extraordinárias – material cultural assimilado em sedimentos anaeróbios de leitos de rios, lagos ou mares. Estas especiais condições podem revelar uma imagem de alta resolução das actividades do Passado.
Nas Ilhas Britânicas, e para ambientes atlânticos, as excepcionais descobertas e consequente investigação dos “barcos de pranchas” tem vindo a revelar-se fundamental, tanto mais que a informação disponível, relativa às características das proto-embarcações da Idade do Bronze, terá sido sobretudo registada em suportes iconográficos (Bradley, 1997; Kristiansen, 2004; Van de Noort, 2006). Parte daqui a razão pela qual, no âmbito do presente trabalho, foi dado particular enfoque à temática dos “sewn-plank boats” britânicos (Wright, 1990; Wright et al., 2001; Clark, 2004a; 2004b; MacGrail, 1997), as principais referências materiais para as embarcações da Idade do Bronze atlântico no actual panorama da investigação.
Justamente, na Grã-Bretanha, as últimas décadas têm sido profícuas em trabalhos arqueológicos relativos às antigas navegações oceânicas, particularmente no decorrer da Idade do Bronze, numa linha de investigação necessariamente independente da seguida para o espaço mediterrâneo – diferentes mares, diferentes realidades e opções. Estes trabalhos têm vindo a explorar alguns dos raros vestígios de embarcações deste período, além de revisitaram os respectivos contextos arqueológicos e paisagísticos. Assim, importa referir um conjunto de achados, sobretudo localizados no estuário e foz do Rio Humber, no nordeste de Inglaterra: os cinco barcos de casco empranchado identificados em North Ferriby, a partir de 1937, cronologicamente enquadráveis entre a 1.ª Idade do Bronze e os inícios da Idade do Ferro (Wright, 1990; Wright et al., 2001); a prancha isolada de Kilnsea, do Bronze Médio (Van de Noort et al., 1999); e os vestígios de outra embarcação descoberta em Brigg, esta datada do Bronze Final (McGrail, 2001, p. 190).
A par dos achados do Rio Humber, foram assinaladas outras embarcações desta tipologia em Inglaterra, destacando-se o barco de Dover, identificado em 1992 e datado do Bronze Médio – 1575-1520 cal a.C. (Clark, 2004a; 2004b), além de outros vestígios assinalados em Caldicot (Bronze Médio) e Goldcliff, no País de Gales, estes últimos enquadráveis em cronologias do Bronze Final (MacGrail, 2001, p. 190). Em Caergwrle (Clwyd), também foi registada uma pequena embarcação da Idade do Bronze, interpretada, por alguns autores, como um modelo de uma embarcação maior (Denford e Farrell, 1980).
Relativamente à mais recente descoberta – o barco de Dover – esta gerou um projecto de recriação à escala, recorrendo a técnicas e ferramentas antigas, como machados e enxós de bronze, com a supervisão técnica de um experimentado carpinteiro naval, Brian Cumby. O projecto de construção ao vivo e com a participação “hands-on” do público, iniciado em Abril de 2012, teve sede numa oficina do National Maritime Museum Cornwall, em Falmouth (Inglaterra), durou cerca de cinco meses e foi coordenado cientificamente pelo Professor Robert Van de Noort, da Universidade de Exeter, ao abrigo do Arts and Humanities Research Council, financiado pelo Conselho da Europa e culminando na exposição 2012BC: Cornwall and the Sea in the Bronze Age, patente no National Maritime Museum Cornwall (13 de Abril - 30 de Setembro, 2012). O projecto contou, ainda, com uma equipa multidisciplinar de arqueólogos e engenheiros da Universidade de Southampton e da Oxford Brookes University. Além de recuperar o processo construtivo, o projecto de investigação pretendeu explorar e experimentar a navegabilidade destas embarcações em alto-mar (link).
Recorde-se que, em Hjortspring, na Dinamarca, um projecto análogo, desenvolvido entre 1997 e 2008, reconstruiu e experimentou uma embarcação, se bem que muito mais tardia (350 a.C.), mas essencialmente similar, demonstrando que estes barcos estariam adaptados a concretizar viagens marítimas (link).
Por seu turno, as três primeiras embarcações identificadas em North Ferriby (F1, F2 e F3) foram recentemente re-datadas pela desconfiança nos anteriores resultados, presumivelmente contaminados pelo “cocktail” químico de conservação administrado nas últimas décadas. Assim, a original datação correspondente ao “Bronze Médio”, recuou para os inícios do 2.º milénio a.C., no dealbar da Idade do Bronze, sendo a datação da embarcação F3 a mais antiga obtida, até então, para os barcos construídos em pranchas conhecidos na Europa Ocidental – 2030-1780 cal a.C. (Wright et al., 2001). Entretanto, um dos mais recentes exemplares identificados (F4) foi datado dos inícios da Idade do Ferro (Switsur e Wright, 1989), o que atesta uma contínua exploração geoestratégica daquelas águas e portos.
Os referidos achados têm sido capitais para a percepção do real alcance das embarcações nas transformações sócio-económicas, particularmente registadas nos alvores da Idade do Bronze, designadamente pelo seu impacto nas trocas de longa distância em torno de 2000 cal a.C.
Estamos perante embarcações assinaladas, sobretudo, em Inglaterra e no País de Gales, tendo paralelos na Noruega, Finlândia e em algumas regiões da Índia. São construídas em longas tábuas de carvalho e de bétula, provenientes de árvores actualmente já extintas, com perfurações chanfradas e “costuradas” por meio de entrançados de fibras vegetais de salgueiro e teixo, travadas por cunhas de madeira e calafetadas com musgo prensado. Esta técnica supera a ausência de pregos, há época ainda não inventados. As pranchas eram assentes num sistema integral de quilha e travessas que conferia rigidez ao casco, que poderia atingir os 16 m de comprimento (MacGrail, 2001). Algumas destas embarcações apresentaram inequívocos estigmas de ferramentas metálicas, como machados, enxós e escopros (Van de Noort, 2003, p. 405).
Planos dos barcos de Dover, Ferriby e Brigg para comparação (in Clark, 2004b)
No que respeita à sua génese e utilização, a discussão encontra-se em aberto. Inicialmente, estas embarcações deverão ter sido utilizadas apenas como transporte ribeirinho e inter-estuarino, sendo posteriormente aperfeiçoadas para uma navegação mais “aventureira”, de costa e alto-mar. Não sendo consideradas, aprioristicamente, embarcações de mar, os barcos de casco empranchado reúnem suficientes características para admitir uma navegação mais afoita, tirando partido de condições meteorológicas favoráveis, nomeadamente na travessia de grandes canais e em viagens pelo Mar do Norte. E. V. Wright (1990), partindo do modelo de F1, sugere uma travessia do canal de Dover em menos de cinco horas, com uma velocidade média de 5 nós, ou uma viagem até à costa holandesa em pouco mais de 24 horas, partindo de Spurn Point, na desembocadura do estuário do Rio Humber. O mesmo autor calcula uma capacidade de carga máxima da ordem das 11 toneladas, provavelmente utilizada no transporte de mercadorias a granel, incluindo animais e passageiros.
É de notar que, a maior parte destas embarcações foi identificada perto da costa, em ambientes estuarinos, em contextos “entre-marés”, contrastando com a distribuição dos vestígios de embarcações pré-históricas (sobretudo monóxilas), preferencialmente identificadas em interiores braços de rio, mais a montante (Van de Noort, 1996). Esta realidade também foi proposta para o contexto português, relativamente à comparação entre as pirogas monóxilas identificadas no nosso país, talhadas para navegar nos rios e esteiros de estuários, e os hippoi e gauloi, mais adequados para marear nos grandes estuários e costa (Carvalho e Freire, 2007, p. 7).
As escavações levadas a cabo em Ferriby, entre 1978-1980, registaram uma considerável quantidade de lascas de madeira de carvalho com marcas de ferramentas de bronze, além de uma grande peça de madeira de carvalho, salgueiro e bétula, cujas datações apontaram para um período entre o 3.º e o final do 2.º milénio a.C. (McGrail 1997, p. 58). Estas evidências sugerem que as embarcações foram construídas e/ou remodeladas/reparadas em North Ferriby, o que torna o sítio no mais antigo estaleiro conhecido no mundo. Neste contexto, torna-se justo propor que a construção naval, a manutenção/reparação e, sobretudo, a própria marinharia, requeriam habilidades tecnológicas muito específicas, tão ou mais especializadas que a metalurgia. Este é um ponto tido como importante no presente discurso.
Tendo em conta a importância geoestratégica do sítio de Kilnsea, enquanto porto de excelência na desembocadura do estuário do Humber, importante via fluvial de penetração para os territórios do interior e, sobretudo, ponto de partida (e de chegada) da travessia para a Europa continental, torna-se admissível considerar que a sua paisagem costeira terá adquirido uma dimensão e um especial significado simbólico-ritual no quotidiano daquelas gentes marítimas da Idade do Bronze – o mar como limite físico, marco paisagístico, fronteira social, cultural, política e religiosa, um autêntico mare clausum somente passível de ser transposto por meio das embarcações de pranchas. Cruzar esta barreira poderá ter significado uma viagem espiritual, um ritual iniciático para os jovens membros das elites da Grã-Bretanha. Assim sendo, as tripulações das embarcações, enquanto comitivas altamente especializadas, ganhariam um distinto estatuto de prestígio social por via dos laços de lealdade desenvolvidos no mar, essenciais na estabilidade do futuro poder político (Van de Noort, 2003, p. 412). As frotas e os seus marinheiros afirmar-se-iam como destacados agentes na veiculação de mercadorias de prestígio, de impulsos culturais, de conhecimentos de vanguarda e de legitimação do poder das elites.
Porém, navegar o mar não constitui um empreendimento necessariamente mais arrojado e perigoso que navegar o rio. Por exemplo, ainda hoje, o Rio Humber é tido como um dos mais traiçoeiros do mundo. Com uma largura máxima de 14 km, um traçado labiríntico e de difícil praticabilidade, com fortes correntes e bancos de areia em constante mutabilidade, o Humber requer uma pilotagem precisa e experimentada (Pethick, 1990). A paisagem terrestre torna-se, assim, capital para uma navegação à vista, propiciando referências visuais para a pilotagem e para a marcação dos canais navegáveis do labirinto estuarino. Neste sentido, a literatura clássica foi sugerindo o posicionamento de monumentos enquanto útil ferramenta para os processos de navegação e pilotagem durante a Idade do Bronze do Mediterrâneo.
Em suma, o registo artefactual das Ilhas Britânicas valida a indiscutível realidade da navegação marítima nas trocas de longa distância, desde o Neolítico Final/Calcolítico e, em particular, durante a Idade do Bronze, propiciando a dispersão de modelos culturais. Estes itens exógenos têm vindo a ser frequentemente exumados, nomeadamente na região de Wessex, mas também noutros lugares da Grã-Bretanha e Europa Continental, em ambas as costas do Mar do Norte e Mar da Irlanda, sobretudo em ricos contextos funerários. Trata-se de um valioso pacote de artefactos importados, associados à ascensão social de elites em comunidades pré e proto-históricas, estabelecendo e legitimando o seu emergente poder, além de significarem uma clara manifestação do desenvolvimento sócio-económico e da respectiva cultura material.
Torna-se pois plausível que o novo tipo de barco, surgido nas Ilhas Britânicas em torno de 2000 cal a.C., tenha permitido a manutenção e expansão das elites e das suas redes de troca de bens de prestígio, através do Canal Inglês, Mar da Irlanda e em todo o Mar do Norte. Estas embarcações terão proporcionado novas janelas de oportunidade para o acesso aos bens, ideias e conhecimentos, estimulando novas expressões de status social, político, religioso e tecnológico, numa ruptura com as seculares sociais tribais.
Os resultados dos estudos sobre as embarcações norte-atlânticas da Idade do Bronze configuram, deste modo, uma situação muito distante, quer em termos técnicos, quer de eficácia, relativamente aos modelos conhecidos para o Mediterrâneo, nomeadamente para os incontornáveis dados dos naufrágios turco dos cabos de Ulu Burun (século XIII a.C. – Pulak, 1988; 1994; Bass et al. 1989) e Gelidonya (século XII a.C. – Bass, 1967, 2005), e do naufrágio do Cabo Giglio, na Etrúria (século VII a.C. – Bound e Vallintine, 1983).
Por outro lado, se o Mediterrâneo da Idade do Bronze se encontra relativamente bem estudado, numa perspectiva sobre as antigas navegações (Aubet, 1994), descontando as naturais limitações desta investigação, já as peninsulares costas atlânticas continuam deficitárias de trabalhos direccionados para estas realidades.
Ainda assim, para a Idade do Ferro e em Portugal, de referir a descoberta, na “Baixa Pombalina” de Lisboa, na Rua dos Correeiros, de um fragmento cerâmico apresentando uma representação estilizada de uma embarcação de proa e popa proeminentes, com um leme traseiro e um mastro central, passível de enquadramento na tipologia dos hippoi fenícios (ver fig. 145 – Amaro, 1995, apud Arruda, 1999-2000, p. 28; Arruda e Vilaça, 2006, p. 39). Também na Quinta do Almaraz, em Almada, foram exumados dois fragmentos cerâmicos apresentando representações iconográficas de embarcações presumivelmente enquadráveis nesta tipologia (ver fig. 145 – Barros in Cardoso, 2004, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 39).
Representações estilizadas de embarcações da 1.ª Idade do Ferro assinaladas em Portugal: a 1.ª e a 2.ª imagem
referem-se a um fragmento cerâmico identificado na Rua dos Correeiros, em Lisboa (seg. Amaro, 1995, apud Arruda, 1999-
2000, p. 28; Arruda e Vilaça, 2006, p. 39); a 2.ª e a 3.ª imagem reportam-se a dois fragmentos cerâmicos registados na Quinta
do Almaraz, em Almada (seg. Barros in Cardoso, 2004, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 39)
 Os hippoi tinham como principal característica identificativa a sua proa esculpida (prótomo) numa “carranca” em forma de busto de cavalo – a origem do nome “hippoi”. Podendo atingir os 8-10 m de comprimento, estas embarcações “redondas” eram propulsionadas pela força braçal (remos) e pelo vento (velas quadradas), sendo presumivelmente utilizadas na pesca e navegação costeira; enquanto os gauloi podiam atingir os 25 m de comprimento e “calar” até aos 2 m (Arruda, 1999-2000, p. 26; Arruda e Vilaça, 2000, p. 38).
Hippoi
Gauloi
Mais a sul, no Esteiro da Galé, a 2 km para montante da foz do Rio Mira, Estácio da Veiga terá documentado uma “piroga” monóxila (Veiga, 1891, p. 142) a que atribuiu uma cronologia romana ou pré-romana. Porém, o achado foi totalmente destruído antes de poder ser removido, nada chegando aos nossos dias, o que poderia ter permitido o seu melhor esclarecimento tipológico e cronológico. O mesmo investigador também refere achados deste tipo em Peniche, sendo de igual modo inconclusivos (Arruda e Vilaça, 2006, p. 41). No Rio Lima, perto de Lanheses, foram registadas, entre 2002 e 2003, duas pirogas monóxilas datadas entre o século 4.º e o século 2.º a.C. (Alves e Rieth, 2007). Perto do Castro Gueifães (Matosinhos), mais uma notícia de um destes “avistamentos” (Filgueiras, 1980, apud Arruda e Vilaça, 2006, p. 41). Estas embarcações, não obstante o seu primitivismo, manifestam um amplo espectro crono-geográfico. “As Gauloi e as Hippoi deveriam ter sido as naves utilizadas com maior frequência na navegação costeira e em altura, e os barcos de pele e as canoas monóxilas na navegação costeira e fluvial” (Carvalho e Freire, 2007, p. 7).
Posto isto, e na ausência de evidências directas para remotas actividades marinheiras, há que procurar outros indícios, nem sempre tão óbvios. Por exemplo, antes e após o advento dos metais, o Homem recorreu a poitas e âncoras de pedra para fixar as embarcações nas suas primárias actividades. Estão em causa blocos de pedra, geralmente de grosseira forma trapezoidal, circular ou triangular, apresentando perfurações no lado menor (1, 2 ou 3) ou entalhes laterais para a passagem do cordame de fixação.
O recurso ao metal em âncoras só se encontra documentado a partir do séc. VII a.C., enquanto a utilização da pedra é registada de forma continuada até aos dias de hoje, com variadíssimos casos de reutilização como poitas de fundeadouro, o que levanta grandes dificuldades de contextualização e datação.
Consciente da sua importância, Honor Frost elaborou uma tipologia para as âncoras líticas recuperadas por toda a orla do Mediterrâneo, procurando esboçar um mapa das rotas percorridas por embarcações desde a Idade do Bronze (Frost, 1972; 1985). O estudo destas peças líticas permite identificar os fundeadouros e os “proto-portos” dos primeiros navegantes, oferecendo dados fundamentais acerca da dimensão das embarcações que fixavam, da sua proveniência e do carácter das navegações que praticavam – cabotagem ou alto-mar. A utilização de âncoras de pedra encontra-se documentada, por exemplo, no já referido naufrágio do Bronze Final do promontório de Ulu Burun (Turquia), onde foram assinaladas sete grandes âncoras líticas (Pulak, 1994).
Tabela de âncoras líticas mediterrâneas (seg. Linder
e Raban, 1975, in Simplício, 1999, p. 7)
Também em Portugal têm sido identificados diversos casos, sobretudo trazidos “à tona” por pescadores e mergulhadores. Foi o caso do exemplar recuperado por mergulhadores ao largo do Farol da Guia, em Cascais (fig. 149). Trata-se de uma âncora lítica de dois orifícios, de forma trapezoidal bastante alargada, que pela sua tipologia foi enquadrada na segunda metade do 1.º milénio a.C. (Carvalho e Freire, 2007, p. 6, cf. Frost, 1970). No Museu do Mar Rei D. Carlos (Cascais), onde foi depositada, também se pode observar outro exemplar, de forma triangular e um orifício, recuperada no Algarve nos anos de 1980 (fig. 150 – Carvalho e Freire, 2007, p. 6). De facto, até à data, parece ter sido nas costas algarvias que se identificou o maior número destas peças, designadamente em Albufeira (Simplício, 1999, p. 8-9). Ainda que muitas vezes descontextualizados, lá vão surgindo diversos exemplares expostos em alguns museus. Também no Sado (Carvalho e Freire, 2007, p. 7) e na Arrábida (mergulhos promovidos pela Câmara de Sesimbra) têm surgido notícias acerca destes objectos.
Esboço de uma cartografia arqueológica da região de Sesimbra, segundo Cunha Serrão (1962).
De notar a chegada de um
hippoi à costa da Arrábida  
A par das âncoras líticas, também as pedras de lastro podem oferecer uma imagem das dimensões, envergadura e capacidade de carga de uma embarcação. Em casos de naufrágio, nada restando da estrutura decomposta de uma nave, o conjunto lítico de lastro pode esboçar, ainda que muito tenuemente, o seu negativo morfológico. Por outro lado, a análise das características geológicas das pedras de lastro pode indicar, pelo menos, o último porto em que a embarcação descarregou, pois a carga útil, após o desembarque e na ausência de nova carga, era substituída por uma carga de lastro, permitindo estabilidade na viagem de regresso. Estes conjuntos líticos eram frequentemente abandonados junto dos portos, facto que pode constituir uma boa base de trabalho para futuras prospecções, tanto nem linhas de praia, como em leitos subaquáticos, com vista à identificação de pedras roladas, de volumetria média e fora de contexto geológico, expectáveis evidências que, sendo atestadas pela Geologia, poderiam indicar origens exógenas.
Por seu turno, temos os portos e as respectivas estruturas portuárias: estacadas, passadiços e cais palafíticos, molhes e pontões de pedra, etc. Um porto é, por definição, um local de abrigo, surgidouro, ancoradouro e varadouro de embarcações, podendo também designar, por extensão, a povoação estabelecida a partir deste – “pensamos que as características morfológicas de um porto são de tal modo importantes que a análise de tipo arqueológico que delas se possa fazer transcende os contextos culturais e geográficos” (Blot e Blot, 2003, p. 54-61).
Para épocas pré e proto-históricas, são escassos os vestígios directos que tenham perdurado até aos nossos dias, tanto pela própria natureza dos materiais empregues na sua construção, como pela acção da hidrodinâmica fluvio-marítima, causadora de destruição pela erosão e ocultação pela sedimentação. No entanto, a utilização náutica de um sítio naturalmente abrigado deixa sempre vestígios no fundo aquático, desde a simples poita, âncora, pedras de lastro ou total naufrágio, passando por objectos acidentalmente perdidos ou deliberadamente lançados “borda fora”.
O facto de um sítio ter funcionado como desembarcadouro não implica, necessariamente, a presença de estruturas, não lhe retirando, ainda assim, a identidade fundacional de um futuro porto. “Nestes casos o que o arqueólogo busca é por vezes uma memoria atestando a demanda sistemática desse local, quer como apoio (aguada, provisões alimentares, escala técnica para reparações), quer em termos de trocas, isto é, de comércio, de contactos de gente” (ob. cit., p. 51).
Na detecção destes “proto-portos” há que procurar, “não elementos construídos, mas sim “talhados” na rocha de abrigos costeiros, ou, ainda, aproveitando rochas à flor das águas, recifes paralelos à costa e até ilhas costeiras, funcionando como abrigos susceptíveis de receber este tratamento rudimentar” (Blot e Blot, 2003, p. 61, cf. Frost, 1972). Esta lógica, aplicada à costa portuguesa, poderá ser válida para sítios como a Ilha do Pessegueiro (Sines) e praia do Martinhal (Sagres/Vila do Bispo) onde, ainda hoje, as suas cénicas ilhas rochosas continuam a proporcionar abrigo ao ancoradouro (Blot e Blot, 2003, p. 54). Este modelo também poderá ser extensível à Arrábida, se associarmos a Pedra da Anicha ao Portinho da Arrábida.
Ilha do Pessegueiro
Praia do Martinhal
Portinho da Arrábida
Se na Idade do Bronze navegamos em “mares de conjecturas”, ainda assim a investigação arqueológica assinalou alguns prováveis vestígios de estruturas portuárias pré-romanas no nosso território: em Santa Olaia, na foz do Mondego (Figueira da Foz – Rocha, 1905, apud Arruda, 1999-2000, p. 30; Arruda e Vilaça, 2006, p. 43); em Abul, na margem direita do Sado, entre Setúbal e Alcácer do Sal, onde foram descobertas estruturas interpretadas como arquitecturas portuárias datadas da segunda metade do séc. VII a.C. (Mayet e Silva, 2000; Arruda e Vilaça, 2006, p. 43); a que poderão ainda acrescentar-se as evidências verificadas em Cacilhas, na base de Almaraz (Barros, 1998, apud Arruda, 1999-2000, p. 30; Arruda e Vilaça, 2006, p. 44).
Com a intensificação das rotas marítimas, as tradicionais técnicas de orientação tornaram-se insuficientes. À orientação visual pelas naturais referências físicas da costa (eventualmente cromatizadas), por corpos celestes, pelo avistamento de aves, por sinais de fumo e por reflexos solares, o engenho humano acrescentou os “ciclopes de luz” – os faróis (e outras estruturas de sinalização à navegação).
Em Portugal, mais precisamente em Alcabideche (Cascais), alguns autores (Arruda, 1999-2000, p. 29; Arruda e Vilaça 2006, p. 44-45; Fabião, 2009, p. 66) admitem a existência de uma destas antigas estruturas de sinalética náutica – o Espigão das Ruivas. Trata-se de um alto rochedo situado a sul do Cabo da Roca, proporcionando uma pequena plataforma de implantação onde foram registados indícios de ocupação enquadráveis na Idade do Ferro e Período Romano (base de dados Endovélico). O sítio registou a ocorrência de cerâmica diversa, nomeadamente sigillata, uma argola de bronze e um anel, além de uma sepultura violada de tipo “cista” (ob. cit.), o que nos pode remeter para cronologias da Idade do Bronze.
Os trabalhos realizados (Cardoso, 1991; Cardoso e Encarnação, 1993) revelaram uma invulgar estrutura de planta rectangular e discreta entidade, associada a abundantes vestígios de fogo (carvões). A reduzida dimensão da plataforma, praticamente ocupada pela referida estrutura (mesmo descontando alguma erosão a que terá sido sujeita), as características e cota de implantação da estrutura e a abundância de carvões associados, constituem características que, no seu conjunto, não permitem outras leituras senão a sua função enquanto estrutura de apoio à navegação nocturna, contrariando a original interpretação dos escavadores: um templo dedicado ao sol e à lua, em relação com o pequeno porto de abrigo na sua adjacência – Porto Touro (Arruda, 1999-2000, p. 29; Arruda e Vilaça, 2006, p. 44-45).
Na Serra da Arrábida, precisamente no Cabo Espichel, Estrabão, na sua Geographia, faz referência, no século I a.C. (podendo ser eventualmente anterior), a uma torre com funções de farol (Blot e Blot, 2003, p. 60). Também no pequeno cabo do Outão, em Setúbal, promontório que “defende” a linha da barra do Sado, “Jorge de Alarcão, ao que parece guiado por sugestão de V. Mantas (Mantas, 1996), chamou a atenção para a provável existência de um elemento de sinalização desse tipo na zona do Outão, marcando a entrada do estuário do Sado” (Alarcão, 2004, p. 317-325, apud Fabião, 2009, p. 66).

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013