com esculturas de Sara Navarro
I
O vindimador sai à rua
traz na mão esquerda uma pomba de luz
o espaço arde discretamente
e as crianças dançam à volta do chafariz
com girândolas de ouro na testa
o ar aplainando-se como carne viva
as portas abertas
braçadas de olores muito antigos
entrando
e os velhos acariciam os seus animais
de estimação
então /
a oleira aparece
a oleira / violenta
rompendo a cortina dos barros cirúrgicos
agora /
ela aproxima-se do vindimador
ela traz à cabeça um cibório de bronze
lá dentro:
a combustão dos cereais
e o vindimador olha-a
ele sabe que Ela é a FONTE
- a abertura secreta da matéria sonora
II
Fecho os olhos
a flor do trigo sobe-me pelos ventrículos
persigo a cintura das tuas horas metálicas
o grande interior que me inquina
ah! a alegria dos cavalos
os microfones das clareiras
no fundo dos lagos
onde os teus olhos habitam a dor nocturna
inscrevo o teu nome na ânsia do barro
és um chão de sombras iluminadas
- um abismo que relincha
III
Os reflexos dos cestos - nos espelhos - nas paredes do barro.
em frente - o fogo.
e as sombras dos mortos - no jardim - contam as estrelas.
os animais aproximam-se pelo cio da água.
fontes! rios!
asas enroladas à cintura do bosque.
a certas horas - neste lugar -
a água dança no colo do fogo.
e as noras ouvem-se - dentro das cisternas -
possantes.
um campo abandonado.
o retinir das bandeiras.
ah! e suave o vento rasteja pela terra arável dos sonhos.
estas ruas! encruzilhadas!
sempre as mesmas - mas outras.
aqui - o sangue estremece para desabrochar
na barro do cântico.
e os chilreios das estátuas ardem
no palato da oleira que sonha.
a velha criança espreita-a.
é uma gateira oceânica.
ó grande vento nocturno!
amanhã a colheita acontecerá
( - talvez. )
IV
Debruça-se
lava as mãos - iluminadas de noite - no tanque grande
morosamente penteia os longos cabelos negros
o Grande Mistério escorre das torneiras arcaicas
a nora chia – chilreios! claridade!
nos lábios rebenta o flash do sangue nómada
e evoca o mundo através dos vasos da árvore magnífica
dos olhos que a olham por dentro
e de olhos fechados inscreve o fogo
no barro
V
Mananciais que perfuram
as paredes da vertigem
erva que cobre as ruínas
espigões maravilhosos
acendendo o céu
o doce tempo das mães
onde repousam as torneiras
dos celeirosobjectos vazios
por dentro a perplexidade
da luz do azeite
e oleiros que regressam
das grandes viagens
que pelas pontas dos dedos
exibem a claridade do barro
VI
Do barro ergue-se a mulher
por entre os dedos febris
o sangue que era um repouso
bate agora a repique nos ventrículos
paira sobre ela
a noite do oleiro
Publicado por Luís Costa em:
mallarmargens
revista de poesia e arte contemporânea
ISSN 2316-3887
LINK