A Lapa do Fumo e os "ornatos brunidos" | Arrábida


Foi em 30 de Agosto de 1956 que Eduardo da Cunha Serrão visitou pela primeira vez a Lapa do Fumo, reconhecendo, desde logo, o seu “grande interesse arqueológico” (Serrão, 1958, p. 177). De facto, esta foi a primeira gruta arqueológica e a primeira estação pré-histórica, pós-paleolítica, identificada no concelho de Sesimbra. Trata-se de uma cavidade cársica, situada cerca de 3 km a oeste de Sesimbra, na Serra dos Pinheirinhos, apresentando uma galeria aberta em calcários do Jurássico, com sensivelmente 70 m de comprimento, na cota dos 190 m de altitude.

Cunha Serrão, na qualidade de colaborador do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, mandatado pela presidência da Câmara Municipal de Sesimbra, decide avançar para a investigação desta importante jazida. Foi assim que, no Verão de 1957, deu início à sua escavação – “começando por abrir um quadrado com 2 metros de lado, 8,5 metros da entrada, que foi explorado por camadas de 20 cm (não tendo encontrado estratigrafia suficientemente esclarecedora na primeira sondagem, procedi à escavação da parte restante por camadas arbitradas), até encontrar um chão estalagmítico que, neste local e até onde o pude reconhecer, se mostrou estéril” (ob. cit., p. 177).
A escavação revelou uma exemplar sequência estratigráfica e um rico e diversificado espólio, atribuível a cronologias compreendidas entre o Neolítico Antigo e o Período Islâmico: “além dos restos ósseos de vários indivíduos sepultados, se recolheram artefactos de interesse, tais como vários instrumentos e armas de sílex, de pedra polida, de osso e de cobre ou bronze, objectos de adorno e vários ídolos-placas, de ardósia. Mas a cerâmica é a nota mais interessante desta estação, pois, nos 4 m2 de terreno explorados num só quadrado – o n.º 1 –, encontrei cerca de 2.000 fragmentos que pertenceram a uns 200 vasos que podem classificar-se em pelo menos 11 tipos cerâmicos distintos” (ob. cit., p. 177-178).


Entre estes fragmentos, Cunha Serrão isolou 56 fragmentos cerâmicos, correspondentes a 20 vasos diferentes, reunindo um conjunto de características tipológicas e decorativas até então desconhecidas – os “ornatos brunidos” – “fabricada sem recurso ao torno rápido; superfície exterior polida (às vezes também a interior) sugerindo a aplicação de um engobe; ornatos geométricos (praticamente nunca curvilíneos), produzidos pela passagem de brunidores (uns mais largos do que os outros) nas paredes dos vasos, antes do cozimento; ornamentação nas paredes exteriores em quase todos os exemplares portugueses, e no interior em quase todos os exemplares espanhóis (curiosa diferenciação); distribuição geográfica na P. Ibérica: principalmente ao Sul do Tejo e na Andaluzia” (Serrão, 1975, p. 214-215). 

Peças de excelente qualidade, de formas compósitas bastante elegantes, apresentando, em alguns casos, um exuberante barroquismo decorativo, “consideradas justamente o apogeu das produções cerâmicas, de fabrico manual, quando começavam a chegar, ao nosso território, os primeiros exemplares produzidos com uma tecnologia revolucionária, oriunda do Próximo Oriente: a roda de oleiro” (Calado et al., 2009, p. 27).
De facto, o conjunto cerâmico com ornatos brunidos da Lapa do Fumo foi o primeiro do seu género a ser divulgado em Portugal, de forma bastante sistemática e aprofundada para a época. Até então, apenas eram conhecidos alguns escassos fragmentos provenientes do tholos do Monge (Sintra) e da Gruta da Maceira (Torres Vedras) (Silva e Soares, 1986, p. 127), que, pela ausência de paralelos, foram atribuídos a cronologias do Neolítico, Calcolítico e Idade do Bronze. Na sequência da publicação dos trabalhos de Cunha Serrão na Lapa do Fumo, e de outras escavações em jazidas do Bronze Final e da 1.ª Idade do Ferro, na Andaluzia, na Estremadura portuguesa, no Alentejo e no Algarve, proliferaram os arqueossítios com registos de cerâmica com ornatos brunidos.
Segundo Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, é legítimo “aceitar que esta cerâmica se tenha desenvolvido na Estremadura durante o Bronze final, entre o século IX e os séculos VIII/VII a.C., constituindo aqui um centro paralelo ao que simultaneamente se formara na Andaluzia. Destes centros teriam irradiado influências para outras zonas peninsulares, nomeadamente para o Alentejo e Algarve, províncias até então ocupadas pela Cultura do Bronze do Sudoeste” (Silva e Soares, 1986, p. 127-128). A descoberta do monumento funerário da Roça do Casal do Meio, contendo exemplares de cerâmica com “reticula brunida”, permitiu aferir, pela primeira vez, a cronologia relativa destas cerâmicas, pelo menos a nível regional.
Cunha Serrão concluiu que os enterramentos da Lapa do Fumo eram enquadráveis nos meados do 2.º milénio a.C. – “Bronze Médio” (Serrão, 1959, p. 345), todavia, as cerâmicas correspondentes ao Bronze Final não se encontraram estruturadamente associadas a restos antropológicos. Tendo em conta o seu reconhecido rigor metodológico, resta-nos considerar a hipótese de estarmos perante deposições votivas numa “gruta-santuário” do Bronze Final (Gomes e Calado, 2007, p. 152) – “ainda não pude averiguar com segurança o motivo da sua presença, mas ocorre-me que poderia muito bem ser por razões de ritual religioso, se em certas épocas, a Lapa do Fumo foi tida na conta de gruta sagrada onde se iriam fazer oferendas e talvez sacrifícios” (Serrão, 1959, p. 347). Nesta linha, João Luís Cardoso entende que as cerâmicas com ornatos brunidos da Lapa do Fumo “corresponderiam a oferendas fúnebres ou, em alternativa, a deposições relacionadas com santuário rupestre, atendendo à dificuldade de se poderem relacionar com quaisquer sepulturas, hipótese que, embora carecendo de demonstração, é plausível” (Cardoso, 1998, p. 31). As razões do (re)aproveitamento das grutas da região estremenha, durante o Bronze Final, deverão prender-se com a utilização destas “como prováveis santuários rupestres, mais do que para necrópoles e, muito menos, habitação” (Cardoso e Cunha, 1995, p. 55).
António Monge Soares (Soares, 2005, p. 142), com base em observações efectuadas em treze povoados identificados na margem esquerda (portuguesa) do Guadiana, fundados durante o Bronze Final e abandonados entre os séculos VIII e VII a.C., antes de qualquer manifestação atribuível à 1.ª Idade do Ferro, propõe a existência de um “estilo” regional personalizado para as cerâmicas de ornatos brunidos identificadas (ob. cit., p. 141). Ainda que escassas, elas constituem um dos elementos da cultura material transversais aos arqueossítios em causa, cujas gramáticas geométricas se caracterizam pelo barroquismo, variedade e complexidade dos seus motivos. O investigador verificou que esta tipologia cerâmica é relativamente residual no conjunto artefactual recolhido nos diversos sítios estudados, com excepção do povoado de Santa Margarida onde foram registados cerca de 50 exemplares – “Santa Margarida é constituído por três núcleos, separados entre si por cerca de uma centena de metros e, em todos eles, a cerâmica, único tipo de artefacto aí recolhido, aparece concentrado numa zona restrita” (ob. cit., p. 142). A referência a este sítio importa no sentido em que este parece estabelecer uma relação especial com a água, pois “implanta-se entre dois cursos de água e existe uma fonte de água permanente na sua vizinhança imediata” (ob. cit., p. 142). Esta evidência, associada à excepcional quantidade de cerâmica de ornatos brunidos aí recolhidas, contrariamente aos demais sítios da região, constituindo um conjunto artefactual exclusivamente cerâmico, e tendo em consideração o que tem sido proposto sobre a função e significado destas cerâmicas, quer para o Sudoeste espanhol (Torres Ortiz, 2002), quer para as áreas dos estuários do Tejo e do Sado (Cardoso, 1996), será de admitir, para o sítio de Santa Margarida, “um cunho ritual (santuário rupestre?). De igual modo, se poderá inferir a ligação da cerâmica de ornatados brunidos a actos rituais” (Soares, 2005, p. 142).
Por fim, de destacar o pioneirismo metodológico de Eduardo da Cunha Serrão. Em 1958, na qualidade de membro da comissão organizadora do I Congresso de Arqueologia, Cunha Serrão deslocou-se a Inglaterra para conhecer, nos campos de trabalho ingleses, as mais recentes teorias, técnicas e métodos de escavação, no intuito de suprir a carência de elementos de fonte nacional. Os autores que no seu entender desenvolviam os princípios fundamentais da boa técnica de escavação eram: Sir Mortimer Wheeler, o Professor R. J. C. Atkinson e a Dr.ª Kathleen M. Kenyon. Estes partilhavam princípios que condenavam abertamente o método da trincheira. Nesta passagem por Inglaterra, Cunha Serrão ainda visitou o Council for British Archaeology, onde recolheu importante informação bibliográfica. No regresso a Portugal, aplicou o Método de Wheeler pela primeira vez, em 1956, na exploração do povoado neolítico da Parede (Cascais). Em Agosto de 1957 recorreu novamente a este método, desta feita em contexto de gruta, na exploração da Lapa do Fumo, tendo obtido resultados exemplares, especialmente no que respeita à referenciação efectuada através do registo tridimensional de todo o espólio. A escavação da Lapa do Fumo revelou uma excepcional sequência estratigráfica, de grande riqueza arqueológica (cultural e cronológica), permitindo aferir dados de referência para ulteriores investigações e apontando novas abordagens de estudo.
Não há Fumo sem fogo?
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013