"Kochab" a estrela fenícia



Os fenícios, tendo triunfado nos seus negócios, acumularam grandes riquezas e resolveram navegar para o mar que se estende fora das Colunas de Hércules e que é chamado Oceano
Diodoro de Sicilia
(Século I a.C.)

Os registos radiométricos mais remotos que documentam a actividade antrópica fenícia na Península Ibérica reportam-se aos finais do séc. IX/inícios do séc. VIII a.C. e provêem de Huelva (1998). Estes novos dados vieram revogar os dados do Morro de Mezquitilla, até há pouco tempo considerados o paradigma peninsular da antiguidade fenícia e que apontavam para finais do séc. X/inícios do séc. IX a.C. Esta importante aferição cronométrica, quando comparada com os dados mais remotos do território português (Alcáçova de Santarém e Almaraz), sugere que o início da ocupação fenícia do nosso território não corresponde a um segundo momento da colonização. As datações apontam para um hiato de apenas 25 anos entre a fixação de povoações mediterrâneas na região de Gibraltar e os primeiros contactos com o litoral Português. A penetração para o interior verificou-se numa segunda fase, talvez apenas na segunda metade do séc. VII a.C. Também os registos polínicos e faunísticos confirmam estes contactos precoces: os dados revelam uma desflorestação intensiva, além do cultivo extensivo de vinha não selvagem; referindo-se, ainda, a introdução dos galináceos.


A origem física destas gentes tem raízes na costa oriental do Mediterrâneo, entre a Palestina e a Síria, numa pequena faixa de terreno com cerca de 25 km de largura por 320 km de comprimento, correspondente à actual costa do Líbano, incluindo regiões da Turquia e de Israel. Parece terem chegado à região por volta de 3000 a.C., sendo que, em 2600 a.C. tinham já relações comerciais e religiosas com o Egipto, as quais tiveram continuidade, pelo menos, até 2200 a.C., altura em que a Fenícia foi invadida pelos Amonitas (uma das possíveis hordas de Povos do Mar?). A região foi periodicamente invadida e controlada por outros povos, designadamente os Hicsos, os Egípcios e os Hititas. É possível que estas diversificadas influências tivessem estado na origem do desenvolvimento da forte vocação comercial e naval dos fenícios e da facilidade com que estabeleceram relações com outros povos. Aliás, estas diversificadas influências estão bem documentadas nas próprias embarcações fenícias, que incorporaram características de diferentes origens, designadamente do Egeu, da Mesopotâmia e do Nilo. Na verdade, foram os fenícios o primeiro povo que efectivamente desenvolveu e expandiu a arte da navegação e as técnicas de construção naval.
Provavelmente forçados pela exiguidade das suas terras cultiváveis, desde cedo se dedicaram ao comércio marítimo, inicialmente com as civilizações mesopotâmicas, egípcia e grega, expandindo progressivamente a sua influência até regiões mais longínquas. O comércio era assumido como a vocação essencial do “Estado” fenício, de tal modo que se auto-apelidavam de “Kena'ani” (Cananitas), o que em hebraico significa comerciante.

A partir de 1200 a.C., com o declínio do poder dos faraós e com a perda de influência do comércio marítimo desenvolvido pelos Micénicos, reuniram-se condições para uma maior afirmação fenícia, passando a cidade de Sídon a deter a supremacia mediterrânea. Os fenícios não ficaram para a história por um expansionismo bélico, no sentido em que não tentaram ampliar o seu território, optando por uma expansão comercial polarizada no estabelecendo de colónias e entrepostos comerciais. Efectivamente, não tinham população suficiente para fundar e alimentar grandes colónias. Regra geral, escolhiam locais estratégicos, bem destacados na paisagem, como ilhas, meandros ou promontórios, com natural potencial de defensibilidade, com praias abrigadas e seguros ancoradouros para os navios, com fácil acesso a zonas de confluência de vias terrestres e fluviais, ligadas a centros de interesse comercial.


Cabo Espichel

O comércio fenício baseava-se na introdução de uma diversidade de exóticos produtos orientais, documentados pelas fontes históricas e residualmente recuperados no registo arqueológico, alguns dos quais ao longo das costas Sul e Ocidental de Portugal (até ao Mondego). De destacar: pastas vítreas, papiros, incensos, especiarias, âmbares, ébano, marfins, ovos de avestruz, seda, linho, tecidos tingidos com púrpura de Tiro (processada a partir do gastrópode marinho Murex), brocados de Sídon, peças trabalhadas em metal, nomeadamente fíbulas e intrincadas filigranas em delicados adornos de ouro (um legado ainda hoje sobrevivente na nossa ourivesaria), além de abundante cerâmica, nomeadamente de engobe vermelho e ânforas R-1. Em troca, para o Oriente, transportavam materiais em bruto, como madeira de cedro e de pinho; metais como ouro, prata, cobre, ferro e estanho; vinhos, azeites, sal e derivados de peixe, entre outros. Com o desenvolvimento do seu comércio, os fenícios tornaram-se, sobretudo, verdadeiros intermediários.

Setúbal e estuário do Sado (vista da Serra de São Luís)

Neste contexto, vão disseminar-se estabelecimentos fenícios (feitorias, colónias e santuários!) ao longo da costa turdetana, nomeadamente ao longo do litoral ocidental e Algarve, preferencialmente nas margens e estuários dos grandes rios: Guadiana (Castro Marim); foz do Gilão (colina de Santa Maria em Tavira); Sado (Setúbal, Abul e Alcácer do Sal) e Arrábida (!); Tejo (Santarém, Lisboa e Almaraz); e Mondego (Santa Olaia e Conímbriga). Também o Alentejo interior (Redondo) e litoral, Baixo e Médio, sentiu as influências orientalizantes. Todos estes espaços denotam características mediterrâneas típicas que se manifestam a nível climático e paisagístico, em particular no que diz respeito ao coberto vegetal. Regiões assentes na trilogia mediterrânea - pão, vinho e azeite - devendo ainda acrescentar-se, no caso português, o sal, o peixe e os seus derivados.

Os contactos comerciais, com diversificadas civilizações, próximas e longínquas, bem como as navegações que para isso intensivamente praticaram e desenvolveram, por certo propiciaram aos fenícios um considerável acervo de conhecimentos geográficos. No entanto, esta informação não se sintetizou nem a influência deste povo se centralizou num Estado uno de concertada estratégia. A Fenícia encontrava-se dividida em pequenas cidades-estado como Biblos, Sídon, Ugarit, Acre, Beirute, Tiro, Baalbek, entre outras, com elevado grau de autonomia e autodeterminação, entre as quais, com frequência, havia rivalidades acentuadas e persistentes, propiciando um "insalubre" clima de instabilidade.
A localização geoestratégica da Fenícia cedo a transformou em entreposto comercial privilegiado. Efectivamente, encontrava-se no cruzamento das zonas de influência e das rotas comerciais das principais civilizações da época. O comércio marítimo, assente na navegação de cabotagem, transformou as cidades fenícias em portos obrigatórios de acostagem dos navios, quer provenientes do Egipto, quer originários do Mar Egeu. Estas influências múltiplas foram, a pouco e pouco, modelando por certo o espírito deste povo, enriquecendo os seus traços culturais, e desenvolvendo a sua tecnologia. Não é surpreendente, portanto, que rapidamente tenham assimilado os modelos de embarcações que maior eficácia revelaram na navegação e no transporte mediterrâneo, aperfeiçoando-os. Os navios cretenses constituem um bom exemplo dessa assimilação e melhoria tecnológica, as embarcações mais desenvolvidas tecnologicamente em meados do 2.º milénio.

Pesca ao largo de Sesimbra
Os vestígios mais antigos de embarcações fenícias datam de cerca de 1400 a.C., plasmados nos relevos da tumba de Kenamon, em Tebas, representando barcos sírios a descarregar num porto egípcio, denotando características atribuíveis às embarcações sírias dessa época, mas apresentando já algumas evoluções dos navios cretenses. Naturalmente, eram utilizados diferentes tipos de embarcações e diferentes formas de transporte, conforme as mercadorias e os mares. Por exemplo, numa representação de um navio a transportar madeira (provavelmente de cedro), existente no palácio de Sargon, em Ninive, datada de cerca de 700 a.C., é possível observar que parte da carga encontrava-se acomodada no convés, enquanto a restante era atada e rebocada como uma jangada. As galeras fenícias, desta época, podiam transportar cargas relativamente grandes, sendo dotadas de uma proa particularmente forte, com vigas elevadas em ambas as extremidades. Eram propulsionadas a remos mas também armavam um mastro onde era aparelhada, com ventos favoráveis, uma vela quadrangular, sustentada por duas vigas encurvadas. A popa apresentava um grande remo direccional, que servia de leme. Nas representações da época também é possível distinguir, na viga da proa, uma grande ânfora destinada certamente a conter água potável.
Tróia de Setúbal
Nesta altura, os navios de guerra, certamente manifestando algumas influências cretenses, eram estreitos e dotados de um convés sobrelevado, utilizado como plataforma de combate. Tinham entre 25 m a 35 m de comprimento e 4 a 5 m de largura. Tal como as galeras de carga, também recorriam a uma dupla propulsão, movidos a remos e à vela, sendo o mastro amovível. Segundo alguns autores, apresentavam já dois níveis de remos, o que permite classificar estes navios como birremes. A direcção também era controlada por um ou dois remos de popa, além de remos suplementares, curtos e maciços, à proa, permitindo uma grande capacidade de manobra, permitindo-lhes dar meia volta rapidamente, acção determinante em combate. No calor da batalha, estes fortes remos podiam ser presos firmemente ao casco, na horizontal, o que viabilizava a sua utilização como aríete ou esporão multidireccional. Esta era uma das características que os distinguia de outros navios de guerra da época, apesar dos navios cretenses já apresentarem um esporão que, no entanto, era fixo.
Hippoi

Por volta de 850 a.C., como parecem indiciar algumas decorações em vasos do século VIII a.C., os navios mercantes fenícios já denotam características bastante evoluídas, encontrando-se também preparados para os confrontos bélicos, versatilidade reveladora de uma forte competição pelos mares mediterrâneos. Os planos de risco da construção naval da época vão apresentando algumas transformações, perdendo-se a tendência para a simetria longitudinal, numa clara adopção do desenho dos navios de guerra cretenses. A proa vai ser elevada, encurvada e revestida a ferro, permitindo uma maior protecção do casco em caso de abalroamento. O mastro apresenta-se relativamente baixo e compacto, enquanto a vela é reforçada com correias de couro.
A atribuição da invenção da birreme e o momento do seu advento constitui assunto de acesa discórdia. Muitos investigadores defendem que este tipo de embarcação foi introduzido pelos gregos, apenas durante a primeira metade do 1.º milénio. Outros, porém, atribuem este importante avanço aos fenícios, defendendo que este povo já as utilizaria no final do 2.º milénio. Seja como for, o certo é que, num relevo esculpido nos muros do palácio de Ninive, representando a frota fenícia de Luli, rei de Tiro e de Sídon, em fuga do porto de Tiro antes do ataque à cidade empreendida pelo rei assírio Senaquerib (séc. VIII a.C.), já são visíveis, navegando conjuntamente, navios redondos, com extremidades simetricamente levantadas, a par de outros compridos, com esporões pontiagudos, todos eles revelando duas ordens de remos sobrepostos, ou seja, era uma frota constituída por birremes.
Quanto às técnicas de navegação do povo fenício, e como já foi dito, eram essencialmente de cabotagem, orientadas por referências visuais existentes na costa. Estas referências paisagísticas (promontórios, elevações, ilhas, estuários, praias e outros recortes costeiros) revestiam-se, certamente, de um acrescido valor simbólico para estes aventureiros navegadores/exploradores. Poucas eram as etapas que dependiam do recurso à navegação celeste, pela ausência de referências existentes na costa, destacando-se os trajectos entre o Norte de África e as Ilhas Baleares, e entre estas e a costa ocidental da Sardenha. Os fenícios podem mesmo ter sido os primeiros a efectuar travessias do Mediterrâneo – Políbio conta como Haníbal, comandante de um navio de guerra cartaginês, conhecido pelo epíteto de o “Rodiano”, efectuou a travessia entre Cartago e Lylibaeum (actual Marselha) em 24 horas. Tal revela, não só, que as navegações em alto mar eram já uma realidade, mas também que os navios utilizados podiam atingir velocidades consideráveis para a época, pois na travessia aludida a velocidade média teria de ser superior a 5 nós.
Gauloi

A navegação comercial era efectuada, quase exclusivamente, nos meses em que se reuniam favoráveis condições meteorológicas e de agitação marítima, isto é, entre Março e Outubro. Já os navios de guerra, utilizados em missões de patrulha costeira e em acções contra a pirataria, bem como em batalhas, navegavam, provavelmente, durante todo o ano. No decurso da Primeira Guerra Púnica (entre Cartago e Roma), os naufrágios causados por temporais ascenderam, no que se refere aos cartagineses, a cerca de 700 navios (de guerra e comerciais, utilizados para o transporte de tropas e abastecimento), tendo os romanos perdido perto de um milhar.

Em suma, as viagens que os fenícios efectuaram e as feitorias, colónias e santuários (!) que estabeleceram em regiões longínquas, permitem deduzir que o seu conhecimento do meio marinho e configuração terrestre era já bastante avançado. Efectivamente, a rede comercial marítima que desenvolveram não seria possível sem uma tecnologia náutica bem desenvolvida (construção, navegação e orientação). A sua construção naval era bem apurada, produzindo navios comerciais e de guerra, que se moviam com o recurso a remos e a grandes velas quadrangulares. Este povo terá sido um dos primeiros a recorrer à estrela polar na navegação, pois os gregos conheciam esta estrela pela designação de “Kochab” ou estrela fenícia. Por fim, importa acrescentar que as direcções Nascente e Poente eram designadas, respectivamente, por “Asu” e “Ereb”, nomes estes que, embora adulterados, sobreviveram até aos nossos dias através das corruptelas “Ásia” e “Europa”.

Cabo de Sagres
Cabo Espichel
Galeão do Sal ao largo da Arrábida



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A Serra da Arrábida no Bronze Final
A Paisagem e o Homem

(no prelo)

Ricardo Soares

(2012)

Dissertação de Mestrado em Arqueologia
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa