Gruta de Ibn'Ammar | Lagoa


Furnas dos Mouros, Grutas da Mexilhoeira ou de Estombar
Mexilhoeira da Carregação | Lagoa | Algarve

Publicada pela primeira vez em 1850 por Charles Bonnet – Algarve (Portugal): description géographique et géologique de cette province – trata-se de uma gruta situada na estuarina margem esquerda do rio Arade, a cerca de 4 km de Portimão, revelando vestígios arqueológicos de uma ocupação humana compreendida entre o Paleolítico Médio e o período medieval. É admissível considerar uma provável exploração sagrada durante o Bronze Final – gruta-santuário.
O topónimo “ibn’Ammar” remete-nos para o poeta árabe Abú Bakr Mubammad ibn’Ammar, nascido em 1031 em Sannabus (Estombar?), perto de Silves. Segundo a tradição, terá contribuído com poemas para as mil e uma noites.
Aberta em calcários do Jurássico, a gruta desenvolve-se ao longo de um complexo sistema cársico, sendo revelada por várias entradas: um sifão vertical, exposto numa depressão a cerca de 10 metros acima do nível médio das águas do Arade; e, praticamente ao nível do rio, duas condutas forçadas tubulares, que nos conduzem a diversas salas bem marcadas pela hidrogénese, algumas delas inundadas pelo fluxo das marés, apresentando nascentes e lagos.
foz do Arade | Portimão

entrada inferior - duas condutas forçadas

the hidden face of the cave
The Mind in the Cave
lagos interiores | espelhos de água
Praia-mar da lua cheia de 19 de Março - marés-vivas
(Primavera grutesca)
cathedral portal
Arrabidensis Portimonensis
alguns materiais observados
(Bronze Final/Idade do Ferro)
Grutas-santuário

As grutas do Maciço Calcário Estremenho, das Penínsulas de Lisboa e Setúbal, como do Algarve, têm vindo a evidenciar espólios correspondentes ao Bronze Final, que pelo facto de não se encontrarem associados a vestígios antropológicos, excluem a classificação de espaços funerários. As evidências também não nos permitem atribuir uma função habitacional, pois estamos perante cerâmicas, em muitos casos, de alta qualidade: pastas bem depuradas, paredes finas, formas elaboradas e elegantes, superfícies brunidas ou espatuladas, algumas apresentando ornatos brunidos com complexas gramáticas geométricas bicromáticas. Acresce o facto de estas cerâmicas se encontrarem, amiúde, associadas a outros materiais de carácter especial, designadamente artefactos metálicos.
Trata-se de materiais «ritualmente depositados nos espaços subterrâneos, em alguns casos junto de ocorrências de água ou de mananciais, no quadro de actividades sócio-religiosas. Estas estariam conotadas com a crença na presença, em tais lugares, de espíritos ou de divindades de carácter aquático e/ou ctónico» (Gomes e Calado, 2007, p. 150). Ainda hoje, crenças populares atribuem a estes mananciais aquíferos um poder medicinal, pelas propriedades salutíferas, ou mesmo milagrosas, das suas águas.
Por conseguinte, resta-nos, para estes vestígios cavernículas, uma classificação votiva – santuários subterrâneos: «onde os homens procuravam o contacto com o transcendente e as forças da fertilidade, capazes de originarem e de manterem a vida, ou de reproduzirem a cultura, tornando-se verdadeiras grutas-santuário, continuaram longa tradição que remonta, pelo menos, ao Paleolítico Médio, quando ali se desenvolveram os primeiros enterramentos e outras práticas de carácter ritual» (ob. cit., p. 150).
O endocarso figuraria, assim, o submundo uterino da mãe natureza, da terra geradora de vida e transformadora pela morte, um umbilical espaço iniciático de eterno retorno onde as águas subterrâneas simbolizavam um poder transcendental de comunicação/infiltração com o “além”. Estes espaços profundos, escuros, geralmente húmidos, exíguos e ornamentados por formações cársicas de grande beleza, documentam, desde a Pré e Proto-História, práticas magico-religiosas, numa aproximação simbólica às forças da Natureza. Locais «onde existiam os mistérios do nascimento e da morte, da génese de deuses e heróis mas, também, da ligação com o transcendente e o conhecimento superior» (ob. cit., p. 154). Esta ideia encontra-se bem expressada nas grutas naturais, nas grutas artificiais, nas antas e nos tholoi – o mesmo simbolismo em diferentes opções espaciais.
O polimorfismo cultual do final da Idade do Bronze, em particular no actual território nacional, comummente observado na grande diversidade de santuários rupestres, quer em grutas e abrigos, quer ao ar livre, e materialmente perceptível por meio de gravuras, pinturas e depósitos votivos, continua a remeter-nos para rituais de adoração às primordiais ingénitas forças da natureza, a par dos prestados aos antepassados – os guerreiros e heróis civilizadores figurados nas estelas funerárias do Sul de Portugal, associados a deuses ameaçadores e a uma iconografia solar, para muitos autores de origem próximo-oriental (Gomes, 1990). Recorde-se que o culto aos antepassados civilizadores/fundadores ainda é uma realidade bem documentada pela historiografia romana – o genius do pater familias.
Se as primeiras sociedades camponesas associaram as grutas a cultos dedicados a divindades femininas – a deusa-mãe – provavelmente transfiguradas por meio de formações calcíticas como colunas e estalagmites; na Idade do Bronze emerge um novo modelo cultual, sacralizando divindades ctónicas, masculinas e guerreiras, secundarizando o espírito feminino em imagens de deusa-consorte. Nesta época, os locais sagrados expandem-se além das grutas, numa procura do poder transcendente dos marcos paisagísticos, preferencialmente altos.
Recorde-se que as grutas-santuário constituem, durante o II e o I milénios a.C., um fenómeno de largo espectro em todo o Mediterrâneo, particularmente na Grécia. Refiro-me a pequenos santuários subterrâneos como a gruta do monte Ida (Creta); a gruta de Akraios (Tessália); a gruta da acrópole de Atenas; a gruta de Pan (Maratona); a gruta de Hermes (Patsos); a gruta de Kato Akrotiri (Amorgos) (Gomes e Calado, 2007, p. 154).
No contexto nacional, e até à data, tem sido a região da Península de Lisboa a registar maior número de cavidades subterrâneas contendo materiais do Bronze Final, particularmente cerâmicas, jazidas que na sua maioria, e pelo já referido, constituem potenciais santuários cavernículas. Mário Varela Gomes e David Calado referem uma série de prováveis santuários cársicos correspondentes ao Bronze Final da região de Lisboa (Gomes e Calado, 2007, p. 152): a gruta da Ponte da Laje, Oeiras (Cardoso e Carreira, 1996); as grutas do Poço Velho, Cascais (Carreira, 1990-1992); a gruta do Correio-Mor, Loures; o Fojo dos Morcegos, Assafora, Sintra (Marques, 1971; Marques e Andrade, 1974); a gruta do Cabeço do Castelo, Maceira, Vimeiro, Torres Vedras (Zbyszewski e Viana, 1949); a Cova da Moura, Torres Vedras (Spindler, 1981); o abrigo das Bocas, Rio Maior (Carreira, 1994).
Contudo, também a península de Setúbal/Arrábida tem identificadas algumas jazidas do Bronze Final em grutas (santuário?), com deposições de provável carácter ritual. À Lapa do Fumo e à Lapa da Furada poderá vir a acrescentar-se a Gruta do Médico, suspeição a carecer de confirmação por meio de futuras abordagens de sondagem/escavação arqueológica. Recorde-se que a região da Arrábida tem sido alvo, desde 2007, de uma intensa e sistemática investigação arqueoespeleológica, na sequência dos projectos concelhios da Carta Arqueológica de Sesimbra e da Carta Arqueológica da Arrábida/Setúbal, sendo de expectar novos sítios e mais informação acerca deste tema.
À escassez quantitativa de dados para uma correcta aferição da natureza deposicional nestes contextos arqueológicos, acresce a pobreza ou total ausência de relatos e documentação publicada sobre as condições das jazidas identificadas e dos respectivos acervos artefactuais, com a devida excepção para o meritório contributo de Eduardo da Cunha Serrão na Lapa do Fumo.


Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013

Fotografia de Ricardo Soares & Sara Navarro