O (re)monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Arrábida/Sesimbra): as “histórias” da investigação e os novos dados (1960-2013)
SOARES, R. (2014) – O (re)monumento
funerário da Roça do Casal do Meio (Arrábida/Sesimbra): as “histórias” da
investigação e os novos dados (1960-2013).
In Al-Madan Online, N.º 18, Tomo II, p. 65-74.
RESUMO
Síntese da informação produzida nos últimos 50 anos sobre o monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), conhecido desde o início da década de 1960 e referência internacional no estudo do Bronze final. Os dados bibliográficos disponíveis foram complementados e reapreciados à luz de recentes trabalhos de prospecção na envolvente do sítio arqueológico, que detectaram indícios de povoamento. Pela primeira vez, foi possível articular o “mundo dos mortos” com o “mundo quotidiano”, permitindo uma leitura integrada e a apresentação de uma perspectiva coerente sobre a fundação do monumento, no seio das controvérsias cronológicas (Calcolítico versus Bronze Final) e culturais (indígenas versus gentes orientais) que este justifica.
PALAVRAS CHAVE: Idade do Cobre; Idade do Bronze; Megalitismo; Arrábida; Povoamento.
ABSTRACT
Summary of the information made available during the last 50 years about the funerary monument of the Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), which has been known since the early 1960s and is an international landmark in the study of the Late Bronze Age. Available bibliographical data was complemented and reviewed in the light of recent prospective works around the archaeological site, which detected remnants of a settlement. It was possible to articulate the “world of the dead” with the “daily life” for the first time, thus allowing the author to have an integral understanding of the monument and to propose a new more coherent perspective on its foundation, within the existing chronological and cultural controversy (Chalcolithic vs Late Bronze and indigenous vs Oriental people).
KEY WORDS: Copper age; Bronze age; Megalithism; Arrábida; Settlement.
RÉSUMÉ
Synthèse de l’information produite ces 50 dernières années au sujet du monument funéraire de la Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), connu depuis le début des années 60 et référence internationale dans l’étude du Bronze Final. Les données bibliographiques disponibles ont été complétées et réévaluées à la lumière de récents travaux de recherche autour du site archéologique, qui ont détecté des indices de peuplement. Pour la première fois, il a été possible d’articuler le “monde des morts” avec le “monde quotidien”, permettant la lecture intégrée et la présentation d’une perspective cohérente au sujet de la fondation du monument, au sein dês controverses chronologiques (Chalcolithique versus Bronze Final) et culturelles (indigènes versus peuples orientaux) que celui-ci justifie.
MOTS CLÉS: Âge du Cuivre; Âge du Bronze; Mégalithisme; Arrábida; Peuplement.
O monumento funerário da Roça do Casal do Meio foi identificado no início dos anos sessenta por Octávio da Veiga Ferreira e por Georges Zbyszewski, no decurso dos seus trabalhos de levantamento para a Carta Geológica de Portugal – Folha Geológica de Setúbal/38-B (ZBYSZEWSKI et al., 1965). Cerca de dez anos depois, entre 16 de Outubro e 11 de Novembro de 1972, o arqueossítio foi objecto de uma escavação realizada por Konrad Spindler e por Veiga Ferreira.
RESUMO
Síntese da informação produzida nos últimos 50 anos sobre o monumento funerário da Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), conhecido desde o início da década de 1960 e referência internacional no estudo do Bronze final. Os dados bibliográficos disponíveis foram complementados e reapreciados à luz de recentes trabalhos de prospecção na envolvente do sítio arqueológico, que detectaram indícios de povoamento. Pela primeira vez, foi possível articular o “mundo dos mortos” com o “mundo quotidiano”, permitindo uma leitura integrada e a apresentação de uma perspectiva coerente sobre a fundação do monumento, no seio das controvérsias cronológicas (Calcolítico versus Bronze Final) e culturais (indígenas versus gentes orientais) que este justifica.
PALAVRAS CHAVE: Idade do Cobre; Idade do Bronze; Megalitismo; Arrábida; Povoamento.
ABSTRACT
Summary of the information made available during the last 50 years about the funerary monument of the Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), which has been known since the early 1960s and is an international landmark in the study of the Late Bronze Age. Available bibliographical data was complemented and reviewed in the light of recent prospective works around the archaeological site, which detected remnants of a settlement. It was possible to articulate the “world of the dead” with the “daily life” for the first time, thus allowing the author to have an integral understanding of the monument and to propose a new more coherent perspective on its foundation, within the existing chronological and cultural controversy (Chalcolithic vs Late Bronze and indigenous vs Oriental people).
KEY WORDS: Copper age; Bronze age; Megalithism; Arrábida; Settlement.
RÉSUMÉ
Synthèse de l’information produite ces 50 dernières années au sujet du monument funéraire de la Roça do Casal do Meio (Sesimbra, Setúbal), connu depuis le début des années 60 et référence internationale dans l’étude du Bronze Final. Les données bibliographiques disponibles ont été complétées et réévaluées à la lumière de récents travaux de recherche autour du site archéologique, qui ont détecté des indices de peuplement. Pour la première fois, il a été possible d’articuler le “monde des morts” avec le “monde quotidien”, permettant la lecture intégrée et la présentation d’une perspective cohérente au sujet de la fondation du monument, au sein dês controverses chronologiques (Chalcolithique versus Bronze Final) et culturelles (indigènes versus peuples orientaux) que celui-ci justifie.
MOTS CLÉS: Âge du Cuivre; Âge du Bronze; Mégalithisme; Arrábida; Peuplement.
O monumento funerário da Roça do Casal do Meio foi identificado no início dos anos sessenta por Octávio da Veiga Ferreira e por Georges Zbyszewski, no decurso dos seus trabalhos de levantamento para a Carta Geológica de Portugal – Folha Geológica de Setúbal/38-B (ZBYSZEWSKI et al., 1965). Cerca de dez anos depois, entre 16 de Outubro e 11 de Novembro de 1972, o arqueossítio foi objecto de uma escavação realizada por Konrad Spindler e por Veiga Ferreira.
Localiza-se em Sesimbra, nas terras da Quinta
do Calhariz (Terras do Risco/Casal do Meio), entre o sopé ocidental da Serra da
Arrábida, propriamente dita, e a encosta norte da Serra do Risco, assumindo uma
situação de evidente relevo sobre todo o fértil vale (polje) do Risco, distando pouco mais de 1 km da costa atlântica (Fig. 1).
Publicada em alemão e francês (SPINDLER e
FERREIRA, 1973; SPINDLER et al.,
1973-74), a aparente excepcionalidade da Roça do Casal do Meio ganhou, desde
então, um estatuto de referência europeia para os estudos do Bronze Final,
tendo em conta as suas particularidades arquitectónicas (segundo a
interpretação cronológica dos escavadores, inéditas para o período e região em
questão – ocidente peninsular), a sua expressiva implantação na paisagem, por
apresentar um túmulo com duas sepulturas formais (considerando a raridade dos
enterramentos no Bronze Final), as propriedades do espólio exumado, a própria
projecção internacional de Konrad Spindler e as tendências
genéricas da época.
A escavação permitiu recuperar uma planta
definida por um círculo com 11,5 m de diâmetro, com uma abertura a este-sueste
com 1,20 m, delimitada, exteriormente, por um espesso muro, composto por
grandes blocos ortostáticos de calcário regional, com cerca de 2,50 m de
largura e atingindo 1,20 m de altura (Fig. 2-3).
A abertura conduz a um estreito corredor, com 4,20 m de comprimento, que
desemboca numa câmara funerária central, de planta subcircular e com um
diâmetro de base de 3,3 m, supondo uma cobertura original em “falsa cúpula”.
Entre o muro exterior e a câmara central foi possível observar um “corredor”
circular sem aparente entrada (SILVA e SOARES, 1986: 116).
Genericamente, em termos arquitectónicos,
todos os autores debruçados sobre o tema observaram semelhanças entre este
monumento funerário e os de “falsa cúpula” calcolíticos – os tholoi (Fig. 4).
Todavia, apesar de diversas incertezas, Spindler e Veiga Ferreira fixaram-se
nos paralelos então conhecidos para a Idade do Bronze – os “protótipos” do
Mediterrâneo Oriental assinalados, designadamente, em Chipre e na Sicília,
sobretudo os nuraghes da Sardenha (Fig. 5). Os autores assumiram (assim) como
certo que a estrutura e o
seu conteúdo antropológico e material seriam coevos e correspondentes a
cronologias do Bronze Final, sobretudo pelo facto de não terem identificado
materiais calcolíticos durante a escavação. Por outro lado, consideraram que,
quer os construtores do edifício, quer os defuntos nele sepultados, teriam
origens exógenas – orientais (Fig. 6).
As escavações revelaram dois indivíduos (Fig. 7), estudados e publicados, do ponto de vista
antropológico, por G. Gallay (1973): um primeiro na zona sudoeste da câmara,
sepultado directamente sobre o solo, em decúbito dorsal e segundo uma
orientação noroeste-sueste, com a cabeça virada para sueste e a face para
norte; e um segundo, na zona noroeste da câmara, depositado sobre uma banqueta
de argila com uma altura de 25 cm, jazente sobre o seu lado direito, em posição
contraída, com a cabeça para nascente e a face virada a norte (GALLAY, 1973).
A insuficiência de dados
de escavação não tem permitido grandes deduções antropológicas sobre o Homem da
Pré e Proto-História regionais, destacando-se os trabalhos desenvolvidos a
partir dos vestígios osteológicos da Lapa do Bugio, em Sesimbra (ISIDORO, 1964),
e das grutas artificiais da Quinta do Anjo/Casal do Pardo (BÜBNER, 1979), em
Palmela, ambos caracterizadores do Homem do Calcolítico. Ainda assim, a investigação
antropológica dos vestígios osteológicos exumados na Roça do Casal do Meio
permitiu caracterizar, num ténue perfil, tendo em conta a amostragem, dois
homens que habitaram a Arrábida durante o Bronze Final.
Trinta anos após o primeiro estudo de Gallay,
Raquel Vilaça e Eugenia Cunha publicaram em 2005, nesta mesma revista, um
texto de revisão e síntese dos dados arqueológicos, cronológicos e
antropológicos relativos às inumações da Roça do Casal do Meio (VILAÇA e CUNHA, 2005). As investigadoras
concluíram tratar-se de dois indivíduos adultos do sexo masculino, um mais
jovem, com uma idade compreendida entre os 20 e os 40 anos, e outro mais velho,
entre os 40 e os 50 anos. Ambos os indivíduos apresentaram severo desgaste
dentário, porém sem patologias orais associadas. Os ossos dos membros
inferiores e superiores dos dois sujeitos indiciaram uma assinalável robustez,
com grande desenvolvimento das zonas de inserção muscular, sugerindo um esforço
físico repetido ao longo de vários anos, estimando-se uma altura de 1,70 m para
um deles – uma estatura média/alta.
No que respeita à chamada “síndrome do cavaleiro”,
os ossos da bacia e fémures não ofereceram informação conclusiva. Contudo, um
dos indivíduos patenteou alguns possíveis indícios de ter montado a cavalo com
alguma frequência. A avaliação acerca do grupo populacional de origem também
não foi conclusiva, pelo facto de os ossos da face se encontrarem bastante
fragmentados. Parâmetros como o índice nasal e facial poderiam estimar a origem
geográfica destes indivíduos.
Os dois esqueletos proporcionaram duas
amostras submetidas a análise por AMS, não tendo sido contudo possível, por
motivos de acondicionamento das ossadas, diferenciar qual a amostra
correspondente à sepultura 1 e à sepultura 2, respectivamente. Tendo em conta
que as mortes não terão ocorrido em momentos muito distantes, tornou-se possível
obter uma média ponderada das duas datações, resultando numa cronologia
absoluta fixada em 1004-835
cal a.C. (2790 ± 30 BP), num período correspondente ao Bronze Final, entre os
meados do séc. XI e os finais do séc. IX a.C. (VILAÇA e CUNHA, 2005: 52). De
referir que estas datações vieram corroborar a datação relativa proposta por
Spindler e Veiga Ferreira, produzida a partir da acertada análise do espólio
por eles exumado – séc. X ou inícios do séc. IX a.C. (SPINDLER et al., 1973-74: 125-126).
Os dois homens faziam-se acompanhar de um
interessante espólio votivo (Fig. 8), composto
por vários artefactos de prestígio, nomeadamente objectos de bronze: duas pinças, um anel,
um colchete de cinturão e uma fíbula de enrolamento no arco, com braços iguais,
mola simples, fuzilhão recto e descanso. Além destes, de destacar um pente cuneiforme
de marfim.
No que respeita à fíbula, é tipologicamente
semelhante a outros seis exemplares identificados no nosso território, no
“Mundo Baiões/Santa Luzia” – “o
tipo mais antigo e mais comum de fíbula peninsular é o de “enrolamento no arco”
(ou Roça do Casal do Meio, Sesimbra)” (SENNA-MARTINEZ, 2010: 19). Estas fíbulas apontam para paralelos
sicilianos, sendo por
vezes confundidas com as “fíbulas de cotovelo” – em Cassibile datam-se,
convencionalmente, do século XII a.C. (ob.
cit., p. 19).
Relativamente às pinças, têm vindo a ser
identificados alguns paralelos em contextos do Bronze Final do Ocidente
Peninsular, por exemplo em povoados como o Castro dos Ratinhos (Alentejo – BERROCAL-RANGEL
e SILVA, 2010), Monte do Frade (Beira Interior – VILAÇA, 1995; 2005) e Fraga
dos Corvos (Trás-os-Montes – SENNA-MARTINEZ, LUÍS e REPRESAS, 2012). Também no
contexto regional da Arrábida, na necrópole do Casalão, foi identificada uma
pinça desta tipologia. No sítio do Casalão, um cabeço na encosta
nascente da baía de Sesimbra, Eduardo da Cunha Serrão escavou um conjunto de
sepulturas da 1.ª Idade do Ferro (segundo o autor, integráveis na 2.ª Idade do
Ferro – SERRÃO, 1994:
58), contendo alguns objectos de
bronze na tradição do Bronze Final da Roça do Casal do Meio, designadamente uma
pinça, uma mola espiralada de fíbula e um anel (FABIÃO, 1992: 141-143; CALADO et al., 2009: 31).
Quanto ao pente de marfim, tendo em conta o
suporte material em que foi produzido, aponta para uma feição exógena, de
origem mediterrânea norte-africana (SILVA e SOARES, 1986: 121).
As pinças e o pente remetem-nos para cuidados
pessoais e de aparência do “homem-guerreiro” da Idade do Bronze. De recordar
que objectos como pinças, pentes e espelhos (entre outros, de índole marcial)
surgem amiúde representados nas estelas do Bronze
do Sudoeste. Para alguns autores, estas representações fazem eco de um
modelo social fortemente hierarquizado, de tipo “chefado”. Este modelo parece
manifestar-se, de igual forma, na Roça do Casal do Meio, pois, além do espólio,
há que sublinhar o facto de, não obstante a monumentalidade da sepultura,
apenas terem sido registadas duas inumações (já de si raras para a época), o
que aponta para uma evidente distinção destes indivíduos – heróis fundadores?
líderes guerreiros? “comerciantes ou
mesmo missionários”? (CARDOSO, 2000: 65) homens “pertencentes a uma classe sacerdotal em crescente afirmação”? (CARDOSO,
1998: 31) ou membros de uma distinta linhagem de abastados indígenas “proto-latifundiários”?
(SOARES, 2013a). Também não será de estranhar a total ausência das armas e dos
escudos, frequentemente figurados nas estelas do Sudoeste. A deposição de armas
em sepulturas do Bronze Final do Ocidente Peninsular é relativamente rara,
havendo uma tendência, sim, para ocorrerem em depósitos rituais, designadamente
em grutas, fendas e leitos de rio (VILAÇA e CUNHA, 2005: 55).
No que respeita ao espólio cerâmico (Fig. 9), documentaram-se
apenas três recipientes: um vaso bicónico de fundo plano (Fig. 10), registado no interior da
câmara funerária, com 39 cm de altura, apresentando bordo simples, sem espessamento e
lábio convexo, conservando ainda, na zona externa do bojo, vestígios de
reticula brunida de traço fino – “as
características decorações de “ornatos brunidos”, produzidas por pontas rombas,
provavelmente de madeira, constituídas por finas caneluras definindo motivos
reticulados de natureza exclusivamente geométrica” (CARDOSO, 1998: 31); uma taça de carena
de ombro (Fig. 11), registada no corredor, à entrada da
câmara, de fundo externo ligeiramente côncavo, apresentando uma pega vertical
perfurada, aplicada entre o bordo e a carena; e oito fragmentos de uma outra
taça de carena de ombro (Fig. 12), de fundo aplanado, apresentando mamilo
perfurado verticalmente, aplicado sobre a carena (CALADO, 1993: 354).
Os oito fragmentos foram registados de
forma dispersa sobre o monumento, integrando os materiais da mamoa (HARRISON,
2007: 70). Segundo Richard Harrison, estes fragmentos não partilham das mesmas
características de fabrico dos outros dois recipientes referidos. O mesmo autor
admite, contudo, um estilo e produção locais para a totalidade dos três
exemplares cerâmicos identificados (ob. cit.:
71, 76). Estão em causa recipientes de armazenamento, destinados,
presumivelmente, à deposição ritual de alimentos (CALADO, 1993: 354).
Ainda acerca do espólio votivo, resta
referir os vestígios osteológicos de duas cabras e de dois carneiros,
depositados com carne aderente, testemunhando a dimensão simbólica dos rituais
fúnebres da época (SPINDLER et al.,
1973-74; SILVA e SOARES, 1986; VILAÇA e CUNHA, 2005; HARRISON, 2007).
Trata-se, portanto, de um conjunto
artefactual bastante homogéneo, enquadrado no horizonte da cerâmica de “ornatos
brunidos” do Bronze Final, a que se associam objectos em bronze de largo
espectro cronológico e geográfico, recorrentes por todo o Mediterrâneo mas
produzidos localmente (HARRISON, 2007: 76).
A Roça do Casal do Meio insinua, assim, o
grau de diferenciação social atingido pelas comunidades do Bronze Final da
região, integrada no extremo sul da grande “placa giratória” estremenha. Esta
relação inter e trans-regional encontrou-se documentada pela ocorrência de peças
cerâmicas de produção local, de elementos de cariz mediterrâneo, como a fíbula
e o pente, e por modelos artefactuais de origem atlântica, como as peças de
bronze de Alfarim (?) e de Pedreiras – machados de alvado e foice de
talão, de “tipo Rocanes” (SERRÃO, 1967, 1973, 1975, 1994).
Relativamente à mal explicada e
controversa questão da origem fundacional do monumento, João Luís Cardoso, em
2004, a partir das suas observações no tholos
do Cerro do Malhanito (Alcoutim), na continuidade do que já vinha a ponderar há
algum tempo, admite que a Roça do Casal do Meio poderá ter resultado do reaproveitamento
de um monumento calcolítico, tendo em conta a “simplicidade arquitectónica” da sua planta e por
se enquadrar nos paralelos estremenhos de tholoi
(CARDOSO, 2004).
Recorde-se, a este propósito, que já em
1986, Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares denunciavam semelhanças
arquitectónicas com os tholoi identificados no nosso
território (SILVA e SOARES,
1986: 116); enquanto Ana Margarida Arruda também reconhece, “na sua globalidade, uma vaga proximidade
formal e de soluções construtivas com os monumentos megalíticos de tipo tholos”
(ARRUDA, 2008: 362).
Para Richard Harrison, encontramo-nos, efectivamente,
perante um tholos calcolítico,
entretanto arruinado, e que na Idade do Bronze terá sido esvaziado dos
originais conteúdos funerários e escombros estruturais, recebendo no interior um
reboco de argila para “cimentar” a arquitectura e acolher as novas exéquias. A
cúpula não terá sido reconstruída, sendo os sepultamentos selados com um tumulus simples, composto por terra e
pedras (HARRISON, 2007).
Quanto à total ausência de materiais
atribuíveis ao Calcolítico, facilmente se explicará com uma acção de limpeza do
monumento, aquando da sua reocupação (VILAÇA e CUNHA, 2005: 53, cf. CARDOSO,
2004; HARRISON, 2007: 65). Ainda assim, importa mencionar que nas
imediações do monumento foram recentemente registos diversos artefactos
enquadráveis em cronologias calcolíticas (CALADO et al., 2009: 93-99). A este propósito, há que recordar a recorrência, amiúde
documentada no nosso território, de episódios de reutilização de monumentos
megalíticos e de grutas, associados a acções de limpeza de espólios precedentes.
Raquel Vilaça, em 2005, recupera a questão
que a investigação há muito vinha a evitar: “será
o monumento contemporâneo dos enterramentos, ou trata-se de uma estrutura
antiga reaproveitada? E, sendo-lhe anterior, que anterioridade é essa?” (VILAÇA e CUNHA, 2005:
53).
A investigadora de Coimbra, embora
reservadamente, não se vinculando às hipóteses em causa, refere, por um lado, a
constatação estratigráfica dos escavadores, relativamente ao facto de os
enterramentos não terem sido realizados logo após a construção do monumento, o
que abona em favor da hipótese do reaproveitamento de um tholos do Calcolítico, durante o Bronze Final. Por outro lado,
recorda os oito fragmentos de uma taça carenada do Bronze Final, registados
incorporando “as camadas de construção do
monumento” (mamoa), um argumento tido como importante para os defensores de
um original empreendimento arquitectónico nos finais da Idade do Bronze (ob. cit.: 53).
Renovando o interesse e alcance
internacional do arqueossítio de Sesimbra e partindo das dúvidas e incoerências suscitadas pela investigação desde a sua
descoberta, Richard Harrison publica em 2007, na obra de
referência Beyond Stonehenge: Essays on the Bronze Age in Honour of Colin Burgess, um cuidado trabalho de revisão dos dados disponíveis da escavação de Spindler e Veiga
Ferreira, alguns dos quais inéditos, propondo então: “a new interpretation, that the graves were placed inside a much older
Copper Age Tholos after it had been cleaned out. They are not burials
of immigrants from Sicily in a mock-up of a passage grave” (HARRISON, 2007: 65).
Harrison afirma, desde
logo, que a Roça do Casal do Meio atraiu a atenção europeia enquanto raro
exemplo dos opulentos enterramentos do Bronze Final, num monumento megalítico
único, permanecendo, desde 1973, como uma destacada anomalia para os padrões da
“Idade do Bronze atlântica” (ob. cit.: 65). A consequente discussão
rapidamente sanou, com a generalizada tendência em aceitar que o monumento, os
enterramentos e o respectivo espólio votivo seriam todos contemporâneos e correspondentes
ao Bronze Final.
Nesta ordem de ideias, ressalta
uma questão: porquê, depois de 40 anos de investigação arqueológica, ainda não
foi identificado um efectivo paralelo para a Roça do Casal do Meio? Cada ano
que passa, este arqueossítio se torna ainda mais peculiar e incomum!
Após uma atenta revisão dos
dados disponíveis, sobretudo dos inéditos, e reconhecendo a relativa qualidade
e rigor da escavação, mesmo segundo os padrões actuais, Harrison identifica
algumas falhas e incoerências na publicação de 1973-74. Assim, contrariando as
interpretações dos escavadores, avança com a proposta de que “os hierarcas que foram aqui sepultados, não
eram estranhos numa terra estranha. Eram indígenas. Elites nativas” (CALADO et al., 2009: 28, cf. HARRISON, 2007).
Posto isto, coloca duas hipóteses
interpretativas para a génese fundacional da Roça do Casal do Meio: “a primeira é que a singularidade do
monumento se explica pelo facto de ser o reaproveitamento de um tholos, do
Neolítico Final/Calcolítico, por populações da Idade do Bronze, o que levou à
segunda hipótese que é da existência de um povoado do Neolítico
final/Calcolítico, os construtores do tholos e de que os indivíduos sepultados
da Idade do Bronze não vieram de fora mas que estavam associados a um povoado
da Idade do Bronze, na área da Roça do Casal do Meio” (CALADO et al., 2009: 47, cf. HARRISON,
2007).
Na verdade, um dos
principais contributos deste autor foi ter reunido argumentos suficientemente aquilatados
em defesa de uma das leituras “alternativas” (a mais simples e compatível com a
conjuntura arqueológica da região) que tinha sido, à partida, descartada pelos
próprios escavadores: um tholos do
Calcolítico, reutilizado no Bronze Final, quase 2000 anos após a sua construção
e utilização primárias – “with this new sequence in hand, it
is now possible to restore the Tholos monument to the Late Copper Age where it
belongs, and see the Late Bronze Age materials in a new light” (HARRISON,
2007: 75).
Como consequência do
trabalho do referido autor inglês, a questão que se colocava, então e
finalmente, era: onde moravam então esses indígenas? Uma questão que ao
longo da história da investigação estranhamente nunca se explorou, mesmo com o
conhecimento de claros indícios para uma presença humana bem diferenciada na
região da Arrábida, tanto durante o Calcolítico, como nos finais da Idade do
Bronze.
Ora, nos trabalhos de prospecção
arqueológica, desenvolvidos entre 2007 e 2009 no âmbito da nova Carta Arqueológica de Sesimbra, foi possível identificar, nas imediações e à vista do
monumento funerário da Roça do Casal do Meio, inequívocos indícios de
povoamento atribuível ao Neolítico Final/Calcolítico (Fig.
13) – o povoado aberto dos Ouriços (CALADO et al., 2009: 99). Trata-se, efectivamente, de um achado que jogaria bem
com a primeira hipótese proposta por Harrison – os presumíveis construtores do
monumento funerário original.
Todavia, além desta descoberta, também foi
definida uma extensa mancha de ocupação atribuível ao Bronze
Final, descrevendo um arco de círculo junto ao monumento (ob. cit.) – os
potenciais reconstrutores/reutilizadores do monumento. Aprioristicamente
e justificando a sua vasta área, mesmo descontando o actual
desconhecimento do seu substrato cronológico e dos respectivos timings de ocupação (sincronias e
diacronias), o povoamento aberto nas Terras do Risco poderá ter sido formado
por uma solidária rede de pequenos “casais agrícolas” (Fig. 14), todos
regidos por uma subordinação imposta pela eventual sede de “chefatura” no vizinho
povoado fortificado de altura do Castelo dos Mouros, constituindo a base agro-pastoril
de uma expectável macroestrutura de povoamento (SOARES, 2013a; 2013b). Outra
alternativa, para a qual existem alguns paralelos (MATALOTO, 2012), é a de se
tratar de uma “aldeia” de malha urbana pouco concentrada.
De sublinhar o facto de os
vestígios relativos à área de ocupação destas duas realidades populacionais (do
Calcolítico e do Bronze Final, mas também do Neolítico Antigo) se encontrarem
na bordadura do mais fértil vale da região da Arrábida, o vale fluvio-cársisco
(polje) do Risco – o “celeiro
do Risco” (Fig. 15).
Em suma, há muito destacado na história da investigação regional
(e europeia), e mesmo decorridos 50 anos após a sua descoberta, foi faltando
uma efectiva e consensual compreensão fundacional para o monumento funerário da
Roça do Casal do Meio, ou seja, um povoado (ou povoados) que tenham justificado
este empreendimento (construtivo e reconstrutivo) dos vivos, dedicado a alguns
dos seus mortos. Com as referidas campanhas de prospecção, foi finalmente
revelado este lacunar “mundo quotidiano”, designadamente o supracitado povoado
do Neolítico Final/Calcolítico, habitado
pelos presumíveis fundadores do tholos
original; e uma extensa área de ocupação atribuível ao Bronze Final, bordejando
todo o perímetro das Terras baixas do Risco, exploradas pelos potenciais
reconstrutores/reutilizadores do monumento.
Esta “aldeia”, aparentemente composta por uma série de pequenos
“casais agrícolas”, poderá relacionar-se com uma complexa macroestruturademográfica enquadrável no Bronze Final, um vasto território sobretudo implantado
ao longo da Serra do Risco e da Serra da Arrábida, integrado por outros indícios
de povoamento, com funções distintas mas complementares (SOARES, 2013a; 2013b):
o povoado de altura fortificado no Castelo dos Mouros (povoado central?), na
vertente norte da Serra da Arrábida e com domínio directo sobre as Terras do
Risco; o povoado de altura da Serra da Cela, no Portinho da Arrábida (base
portuária?); o povoado de cumeada de Valongo, no topo da Arrábida (“vértice de
atalaia”?); e o “casal agrícola” da Quinta do Picheleiro, no vale a norte da
serra. De destacar o facto de todos estes focos de povoamento manifestarem uma clara
inter-relação de comunicação e visibilidade.
Na ausência de dados de
escavação que nos permitam aprofundar diacronias e confirmar presumíveis
sincronias nas áreas de povoamento do Bronze da Arrábida, tendo em conta a
informação alcançada nos poucos trabalhos de escavação, unicamente realizados
em contextos de vocação mágico-religiosa (Lapa do Fumo, Roça do Casal do Meio e
Lapa da Furada), considerando ainda os novos dados produzidos em abordagens de
superfície, torna-se agora possível esboçar um coerente complexo demográfico, instalado num território
específico e individualizado, com
algum grau de diferenciação e de ordenamento político-administrativo,
insinuando uma forte articulação com as vias de comunicação, muito em especial as fluvio-marítimas (SOARES,
2013a; 2013b).
A aguardar por expectáveis
e mais aprofundados trabalhos, designadamente por via de escavações em
contextos de habitat, muitas questões
vão permanecer em aberto, por exemplo: qual seria o papel do (re)monumento
funerário da Roça do Casal do Meio, reerguido entre a área de povoamento das
Terras do Risco e o povoado de altura do Castelo dos Mouros? Quem seriam
aqueles homens notavelmente diferenciados na morte, sepultados a meio caminho
entre o seu “Castelo” e as suas “Terras”, dominando-as mesmo além morte?
Ainda assim, a Serra da Arrábida afigura-se hoje como um interessante
“iceberg de Bronze”, no qual se pode
descortinar uma florescente e vigorosa cota emersa no horizonte cultural da
última fase da Idade do Bronze do Sul da Estremadura.
Resta referir que o
monumento funerário da Roça do Casal do Meio se encontra classificado enquanto Imóvel
de Interesse Público desde 1984 (Dec. N.º 29/84 de 25 de Junho). No
decorrer dos meses de Setembro e Outubro de 2013, sofreu uma acção de
desenterro e limpeza, objectivando a sua valorização no âmbito da candidatura
da região da Arrábida a Património Misto da Humanidade (UNESCO). Não deixando
de constituir uma excelente oportunidade para um melhor esclarecimento sobre
algumas das questões aqui tratadas, do ponto de vista arqueológico, tendo em
conta os objectivos específicos e limitados da intervenção, não se esperam significativas
novidades.
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