Armação da Praia do Barril | Tavira
Portinho da al-rábita – um santuário natural
A Serra da Arrábida – edénico suporte de fixação humana
No princípio era só o Verbo. A força criativa da Natureza espraiou-se naquelas paragens e do barro da Terra elevou-se, vaidosa, numa erupção de beleza sem igual. Depois veio o Homem, comungando do cenário edílico que a Mãe lhe propôs – «Nuvens solitárias pairavam, carregadas, sobre a Serra da Arrábida, lançando sombras em baixo, no vale fundo. Quanto mais alto subíamos, mais alto se eleva no horizonte o vasto mar. Toda a natureza era de uma gravidade, de uma tranquilidade, imperturbada por qualquer ave. Como antes da criação.» – Hans Christian Andersen
No coração do invulgar monumento geológico conhecido por “Serra da Arrábida”, definida pelo Oceano e pelos grandes rios do Sul, o Tejo e o Sado, surge a enseada do Portinho da Arrábida, adornada pela cénica Pedra da Anicha. Este recanto revela-se como uma genuína “rapsódia” da Arrábida, consagrando um pouco de tudo o que esta montanha significa e tem para partilhar: o seu património geológico, ambiental e cultural, nomeadamente histórico-arqueológico e mágico-religioso.
Decompondo o topónimo “Portinho da Arrábida”, este remete-nos, por um lado, para uma manifesta funcionalidade portuária, arqueologicamente documentada desde época Romana.António Ignácio Marques da Costa, incansável pioneiro da Arqueologia da Arrábida, identificou, em 1907, uma fábrica de salga e de preparados piscícolas (garum) no Creiro.
A primeira referência à Serra da Arrábida remonta ao século X, quando al-Razi descreve os«montes dos filhos de Benamocer», a que os locais chamavam de “Arrábida”.
Um santuário natural per si – a espiritualidade e as grutas
Desde os primeiros homens da Pré-história Antiga, até aos nossos dias, o Portinho da Arrábida tem vindo a registar uma ininterrupta sequencia de ocupação, particularmente evidente nassuas grutas e abrigos – a Lapa de Santa Margarida, a Gruta da Figueira Brava, a Gruta do Médico e a Fenda. Estes recantos naturais, abertos por acção natural no ventre da Terra, revelam-se como as primeiras opções de refúgio, culto aos mortos e retiro espiritual; claras manifestações de um íntimo passado de coexistência entre a força natural da Serra e a espiritualidade dos seus ocupantes, uma carga de misticismo natural explorada desde a Pré-História até aos dias de hoje – «(...) O que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido. (...) Mas é fora de dúvida que o visitante, se não o apreendeu, saiu da Arrábida sem querer ter entrado nela verdadeiramente!» – Sebastião da Gama
A Lapa de Santa Margarida, por exemplo, legou-nos raros testemunhos de uma ocupação de carácter mágico-religioso. Hoje, descendo ao seu interior por uma pitoresca escadaria com cerca de 200 degraus, o visitante penetra numa gruta-santuário que na sua “nave central” ainda ostenta uma capela, construída no século XVII, apresentando três nichos destinados às imagens de Santa Margarida, Santo António e Nossa Senhora da Conceição.
A Fenda, outro local merecedor de referência, apresenta-se como um acidente tectónico de rara beleza natural, com cerca de 1 km, paralelo à linha de praia do Portinho. Trata-se de uma excelente área de habitat e abrigo, com diversos recantos e espaços subterrâneos labirínticos.
O “culto das grutas” aparenta ter continuidade numa curiosa iconografia naturalista, bem patente na arquitectura e arte do Convento da Arrábida, manifestando-se na criação de grutas artificiais forradas com conchas; em várias guaridas, algumas erigidas sobre cavidades; e naornamentação de nascentes de cariz salutífero.
Santuário cristão – a estória do Convento da Arrábida
Em finais do século XII, logo após a Reconquista, a Serra “converte-se” ao culto cristão, passagem histórica residualmente latente na lenda da Nossa Senhora da Arrábida – a lenda fundacional do Convento da Arrábida.
Reza a estória que, por volta de 1215, um abastado mercador inglês, de nome Haildebrant, abandona a sua pátria, procurando fortuna noutras paragens. Zarpa então para Portugal, com todos os seus bens reduzidos a algum dinheiro e uma imagem de Nossa Senhora, talhada em pedra, de que era muito devoto. Numa noite de tormenta, ao largo da foz do Tejo, a embarcação em que navegava perde o rumo, levando-o à “cara” do Cabo Espichel. Já perto da Praia de Alportuche, implora protecção à sua santa que lhe parece corresponder com uma milagrosa luz salvadora, penetrando o breu no alto da serra. Na quietação da borrasca, Haildebrant procura agradecer o milagre, dando assim por falta da imagem. Já de manhã, o exausto inglês desembarca na placidez do Portinho, subindo à serra em busca do local que iluminara a sua noite de desespero, encontrando sobre um penedo a imagem da sua protectora. Seguindo a lenda, Haildebrant decide erigir, nesse mesmo local, a Ermida da Memoria, dedicando o resto dos seus dias a uma servidão espiritual à santa – Nossa Senhora da Arrábida.
Mais tarde, no século XVI, o Duque de Aveiro doa a Serra da Arrábida ao franciscano Frei Martinho, que edifica uma série de celas e eremitérios no Portinho, para acolher outros frades e peregrinos.
Com o tempo, a ocupação franciscana foi povoando a Serra com diversos estabelecimentos de culto, ligados por um circuito sagrado entre a ermida da Senhora de El’Carmen, no sopé ocidental da Arrábida, e o convento. Um secular caminho de pé-posto associando uma série de cavidades e ermitérios, satélites do complexo conventual. Este circuito é coroado pelo iconográfico Monte Abraão, onde foi erigido o Calvário das Três Cruzes. Uma série de guaridas “denteiam” a vertente Sul do Monte Abraão, entre o Convento e o cruzeiro, reproduzindo a Via Sacra. Do original cruzeiro de madeira já nada resta, pois terá sido substituído por um cruzeiro de pedra em 1954, ano em que o Duque de Palmela mandou instalar no local as três cruzes de calcário que ainda hoje distinguem aquela paisagem.
«(...) Duvido poder ser que se desfaça
Com água clara, e branda a pedra dura
Com quem assim se beija, assim se abraça.
Mas ouço queixar dentro a Lapa escura,
Roídas as entranhas aparecem
Daquela rouca voz, que lá murmura (...)
Pergunto ao mar, às plantas, aos penedos
Como, quando, por quem foram criados?
Respondem-me em segredo mil segredos (...)»
Frei Agostinho da Cruz
[1] Frei Agostinho da Cruz (1540-1619) – Poeta nascido no Minho, em Ponte da Barca, toma o hábito da Ordem dos Capuchos Arrábidos com 20 anos. Em 1605, com 65 anos, sobe à Serra da Arrábida para seguir uma solitária vida eremítica de oração e contemplação poética, onde acaba por falecer.
[2] Sebastião da Gama (1924-1952) – Poeta nascido na Arrábida, em Azeitão, que desde a sua obra de estreia – Serra-Mãe (1945) – ficou intimamente ligado à sua Serra. Professor de português, licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, em 1947. Foi membro fundador da Liga para a Protecção da Natureza, 1948. Eternizado pelo seu legado, teve uma vida curta pois sofria de tuberculose desde a adolescência.
Ricardo Soares
in Revista Itinerante N.º 5 - por trilhos das 7 maravilhas naturais de Portugal