Uma âncora de pedra emersa da ruralidade algarvia ou simplesmente uma "poita de burro"?



O objecto aqui apresentado foi recentemente identificado, descontextualizado, surgindo "em seco", nas imediações de ruínas de um "casal agrícola" de época contemporânea/etnográfica. 
Produzida em grés (arenito) vermelho de Silves, apresenta uma forma grosseiramente triangular, com uma regular perfuração no seu extremo menor. 
A explicação funcional mais simples remete-nos para uma "poita de burro", ou seja, uma amarra de pedra perfurada que, horizontalmente, incorporava a parede de um edifício rural, destinando-se a prender animais. 
A outra possibilidade, considerando analogias mais costeiras, consiste na possibilidade de se tratar de uma ancora lítica que, por se encontrar distante dos seus mais expectáveis ambientes de ocorrência (marinhos, fluviais ou museológicos!), implicaria dois momentos distintos de utilização: a original função náutica e a sua posterior deslocação e reutilização em ambiente rural. De facto, existem diversos paralelos algarvios de âncoras líticas morfologicamente semelhantes ao monólito aqui apresentado. 
Em qualquer das hipóteses, esta pedra reveste-se de um conjunto de curiosos aspectos: no seu lado menor, no topo envolvente à perfuração, apresenta algumas depressões semiesféricas, prováveis "covinhas" de bigorna; uma série de alongados trilhos incisos, dispersos sobretudo na metade superior da peça e comummente associados a tarefas de afiar/amolar gumes de machados e de outras lâminas; e, no centro de uma das faces, uma depressão longitudinal de polimento. 
Trata-se de um conjunto de evidências que propõem uma ferramenta rural multiusos. As características geológicas do grés de Silves, um arenito de grande dureza e de grão-fino, foram exploradas desde a Pré-história até à actualidade, designadamente para tarefas de amolar gumes. 

A propósito das poitas e âncoras de pedra, antes e após o advento dos metais, o Homem recorreu a estes objectos para fixar as embarcações nas suas primárias actividades. Estão em causa blocos de pedra, geralmente de grosseira forma trapezoidal, circular ou triangular, apresentando perfurações no lado menor (1, 2 ou 3) ou entalhes laterais para a passagem do cordame de fixação.
O recurso ao metal em âncoras só se encontra documentado a partir do séc. VII a.C., enquanto a utilização da pedra é registada de forma continuada até aos dias de hoje, com variadíssimos casos de reutilização como poitas de fundeadouro, o que levanta grandes dificuldades de contextualização e datação.
Consciente da sua importância, Honor Frost elaborou uma tipologia para as âncoras líticas recuperadas por toda a orla do Mediterrâneo, procurando esboçar um mapa das rotas percorridas por embarcações desde a Idade do Bronze (Frost, 1972; 1985).
O estudo destas peças líticas permite identificar os fundeadouros e os “proto-portos” dos primeiros navegantes, oferecendo dados fundamentais acerca da dimensão das embarcações que fixavam, da sua proveniência e do carácter das navegações que praticavam – cabotagem ou alto-mar.
A utilização de âncoras de pedra encontra-se documentada, por exemplo, no célebre naufrágio do Bronze Final do promontório de Ulu Burun (Turquia), onde foram assinaladas sete grandes âncoras líticas (Pulak, 1994).
Também em Portugal têm sido identificados diversos casos, sobretudo trazidos “à tona” por pescadores e mergulhadores. Foi o caso do exemplar recuperado por mergulhadores ao largo do Farol da Guia, em Cascais (fig. 149). Trata-se de uma âncora lítica de dois orifícios, de forma trapezoidal bastante alargada, que pela sua tipologia foi enquadrada na segunda metade do 1.º milénio a.C. (Carvalho e Freire, 2007, p. 6, cf. Frost, 1970). No Museu do Mar Rei D. Carlos (Cascais), onde foi depositado, também se pode observar outro exemplar, de forma triangular e um orifício, recuperado no Algarve nos anos de 1980 (fig. 150 – Carvalho e Freire, 2007, p. 6).
De facto, até à data, parece ter sido nas costas algarvias que se identificou o maior número destas peças, designadamente em Albufeira (Simplício, 1999, p. 8-9). Ainda que muitas vezes descontextualizados, lá vão surgindo diversos exemplares expostos em alguns museus (Museu de Portimão, Museu Municipal de Arqueologia de Silves, etc.). 
Também no rio Sado (Carvalho e Freire, 2007, p. 7) e na Arrábida (mergulhos promovidos pela Câmara de Sesimbra) têm surgido notícias acerca destes objectos, porém não foi possível, até ao momento do fecho do presente texto, precisar melhor estas últimas informações orais.


Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ricardo Soares
2012-2013