Acerca de um dos mais emblemáticos e interessantes sítios arqueológicos de época romana da costa algarvia, segue-se uma selecção de referências bibliográficas:
MEDEIROS, I. E. e BERNARDES, J. P. (2012) – Boca do Rio (Budens, Vila do Bispo). Paisagem e Arqueologia de um sítio produtor de preparados de peixe. Portugal Romano.com - Revista de Arqueologia Romana em Portugal, Ano I, N.º 0, pp. 6-9.
MEDEIROS, I. E. e BERNARDES, J. P. (2012) – Boca do Rio (Budens, Vila do Bispo). Paisagem e Arqueologia de um sítio produtor de preparados de peixe. Portugal Romano.com - Revista de Arqueologia Romana em Portugal, Ano I, N.º 0, pp. 6-9.
Breve
enquadramento
«Boca
do Rio corresponde ao vale que acompanha o troço final da Ribeira de
Budens, situado nos limites orientais do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, a sudeste da povoação de
Budens (Vila do Bispo, Faro). O acesso principal é feito através da EN
125, a seguir ao entroncamento de Budens.
Este vale interrompe as arribas
vivas que modelam a parte mais ocidental da costa algarvia, que é formada por
um alinhamento escarpado de rochas calcárias erosivas. Na desembocadura da
pequena praia local, a qual dá nome ao lugar e constitui a extremidade de um
antigo estuário que, ao sedimentar, deu origem ao vale actual, encontram-se as ruínas da fábrica romana de salga de peixe.
A praia resume-se a uma curta língua de areia interposta entre as falésias de
dois morros que apresentam, igualmente, vestígios de ocupações arqueológicas: a
nascente, o Cerro de Almádena que
acolhe as ruínas do forte seiscentista de São Luís, e a poente, o Morro dos Medos
ou Lomba das Pias, não tão imponente quanto o primeiro e onde,
presumivelmente, se situa a necrópole romana
associada à fábrica piscícola.
O antigo estuário, com uma
extensão de 2 km, apresentava
excelentes condições de abrigo para as embarcações que navegavam à cabotagem entre
o Mediterrâneo e o Atlântico. Estas características geomorfológicas da laguna ofereciam
ainda aos barcos a possibilidade de invernar, tal como acontecia em outros
pontos do litoral lusitano. Na Ilha do Pessegueiro (Sines), por exemplo, terá existido um dos principais
fundeadouros da costa alentejana, activo, pelo menos, a partir dos séculos
IV/III a.C.
Sensivelmente a 1 km da
linha de
costa, o vale pauta-se pela união da Ribeira de Budens, a qual
converge no mar a nascente das ruínas, a dois tributários: as
ribeiras de Boi e Vale Barão. A primeira alinha-se de norte
para sul e a segunda, que corre sazonalmente no sentido
nordeste-sudoeste, alimenta a parcela de terreno mais
fértil do vale, onde se pratica o cultivo e o pastoreio. Entre
a Ribeira de Budens e a Ribeira de Vale Barão encontra-se o Paul e
Budens. Apesar de ocupar um espaço bastante reduzido, em consequência de alterações
significativas provocadas pelas modernas estratégias de cultivo, irrigação e
ocupação dos terrenos envolventes, este paul ou sapal é equiparado à reserva natural
da Ria Formosa, à ria de Alvor e à laguna dos Salgados,
entre outros,
como ecossistema
do litoral
algarvio onde
se podem ver
várias espécies de aves nas suas
migrações para o continente africano.
A grande carga de
sedimentos depositada no vale da Boca do Rio ao longo dos últimos séculos torna
hoje a agricultura praticável em praticamente toda a sua extensão, desde o
acesso da EN 125 à praia. Em ambos os lados da estrada podem ser vistas
pequenas hortas irrigadas por noras. Mas, tendo em conta que a produtividade dos
solos não deveria ser tão elevada na época romana, as gentes locais tiraram
maior partido da riqueza em recursos naturais marinhos e da exploração de sal
proporcionada pela abertura oceânica do estuário. Tal justificou a fixação da fábrica
de salga naquele lugar.
Actualmente toda a linha
de costa algarvia é fortemente afectada pela erosão marinha, sendo
a praia da Boca do Rio um dos pontos onde o fenómeno é bem expressivo. Um
estudo publicado há cinco anos apresentou a evolução da linha de costa
naquela praia, entre 1945 e 2001. O notório recuo da faixa costeira conduziu à
inevitável destruição das estruturas arqueológicas conservadas na frente do
mar. No término
do Inverno de 2010 verificou-se que o areal resistente na extremidade
nascente da praia desaparecera completamente, ficando só um monte de burgaus e seixos.
Este fenómeno já tinha sido referido em 1878, quando o primeiro arqueólogo a
escavar no sítio, Sebastião Phillipe
Estacio da Veiga, descreveu as estruturas arqueológicas que observou.
Também António Santos Rocha, outro
estudioso que ali empreendeu trabalho, comprovou o mesmo cenário anos depois,
dizendo não vislumbrar uma “praia de areia” mas sim “pedras de construção até à orla do mar” (ROCHA, 1896, p. 77). Em 1933, o avanço do mar sobre a praia intensificou-se, levando
José Formosinho à extracção de um dos mosaicos descoberto por Estacio da Veiga
então ameaçado pelas marés.
Investigações arqueológicas
Desde o século XVIII que circulam notícias do
aparecimento de ruínas arqueológicas na praia da Boca do Rio, as quais terão sido colocadas a descoberto em 1715, no seguimento de um temporal, e em 1755, quando
o tsunami
originado pelo terramoto que destruiu grande parte da baixa lisboeta e várias
outras povoações portuguesas, galgou o vale. As
notícias fizeram despontar o interesse dos arqueólogos dos séculos
seguintes. As obras de João Baptista da
Silva Lopes (LOPES, 1988) e
de Pinho Leal (LEAL, 1873) veiculam várias alusões às
ruínas.
Uma das notícias dada a
conhecer por Silva Lopes cita os relatos de um médico lacobrigense que teria
assistido ao cataclismo e assinalado as estruturas que então se tinham ficado
a ver junto à praia. Dimas Tadeu de Almeida Ramos de seu nome
frisou que, além das muitas estruturas e materiais postos à vista pelo mar em 1755, já quarenta anos antes se teria identificado “hum caes” em resultado de “outro impulso do mar”. Disse ainda que o mar teria entrado terra
adentro por “mais
de meia legua em altura de 10 a 12 varas, arrazando huns grandiosos médãos de areia,
onde estavão 50 ferros dos mais pezados pertencentes à armação que ali se
lança, os quaes arrastou a mais de hum quarto de légua” (LOPES, 1988, p. 222). Ao
recolher-se, o mar deixou a descoberto junto à água, grandes e luxuosos edifícios, e “onde era terra firme, hum lago bastante grande”,
referindo-se o médico, muito provavelmente, à zona mais baixa do vale ocupada
pelo paleoestuário da ribeira de Budens (idem, ibidem). Os mesmos compartimentos postos a
descoberto pelo tsunami foram documentados pelo pároco de Budens,
que refere as estruturas arqueológicas como “fundamentos de avultada Povoaçã q continuava para aparte do
Mar, pois no abrir das ondas se divezaraõ a montes de pedras soltas de destruidos edificios que com o continuo dos tempos submergioraõ as agoas, e na pequena
parte q perto das ondas as áreas descobriraõ vi, e observei muitas pedras de
cantaria bem fabricados e princípios de edifícios q ao parecer e modo guardavaõ
a Povoaçaõ das inundações, e Marés naquelle tempo; e hoje se acha tudo
novamente coberto de
área como antes, e seprezume ter sido humã antiga cidade de Buda, donde tomou
nome esta freguesia de Budens, mas disto naõ vi escrito” (CARDOSO, 1758 apud
in CARVALHO e VIDIGAL, 2006,
pp. 44-46).
Animado pelas notícias,
Estacio escava no local. Mas o arqueólogo tavirense não terá escondido a
desilusão por não ter encontrado “os nobres edifícios” que os autores anteriores tinham referido
e que a Companhia Geral das Pescas do Reino do Algarve,
fundada em 1773, provava existirem aquando da construção dos dois barracões
de apoio às armações de atum situadas
ao largo das praias da Boca do Rio e do Burgau (para captura do atum de direito
e do atum de revés, respectivamente).
Em 1894, Santos Rocha, com
a intenção de enriquecer os depósitos de materiais do
museu da Figueira da Foz, faz também escavações na Boca do Rio. Ainda que só tenha
recolhido um conjunto de artefactos do qual faz parte um fragmento de mosaico aparentemente
distinto de qualquer um dos três identificados por Estacio e magistralmente desenhados
pela sua esposa Amélie Luccote, considerou, ao contrário do
primeiro, a pré-existência de um cais ou molhe que, ao ser desmontado para
recuperação de uma lápide, fora destruído pelo impacto das ondas
(ROCHA, 1896, p. 77).
Por esta altura Boca do
Rio havia já sido considerado um dos sítios romanos mais importantes
da região algarvia. Tendo isso em consideração, o fundador do Museu de Lagos,
José Formosinho, começa a frequentar assiduamente
o sítio, que já conhecia desde pequeno, pelo menos a partir de 1930, ano em que a Câmara Municipal de
Lagos cria um museu que fica a seu cargo. Nesse ano, numa das visitas, dá conta
do estado de conservação em que se encontrava o mosaico que pavimentava a
sala K da planta de Estacio. Disse ainda que tinha visto um outro mosaico quase
intacto que
entretanto o mar destruíra e que o exemplar dos compartimentos C e D já teria
desaparecido (SANTOS, 1971).
José Formosinho também
registou algumas cetárias, pois refere que “ao longo da praia, quer a E quer a W da Boca do Rio, abundam
os tanques de salga”. Além de ter extraído o mosaico,
Formosinho abriu “valas de reconhecimento” a norte da área explorada
por Estacio da Veiga, encontrando um grande número de estruturas, onde se
incluem “várias piscinas com
formas diversas, com fundo e paredes de formigão”, que,
certamente, corresponderão às cetárias. Cavou mais duas valas estreitas, uma
das quais com cerca de 60 m de comprimento, no
sentido nascente-poente, a partir da área de onde havia recuperado o mosaico,
tendo confirmado a continuidade dos edifícios ao longo do talude da praia (correspondentes
às estruturas e derrubes de muros que hoje se vêem à superfície). A
outra vala terá incidido na área contígua pelo lado sul aos armazéns de pesca.
Na mesma altura
Formosinho faz explorações na villa romana da Abicada (Portimão).
Ali, levanta, pelo menos, um mosaico monocromático. O procedimento de
extracção desse pavimento ficou registado no seu caderno de campo.
Crê-se que seguiu uma metodologia semelhante na recuperação
do exemplar da Boca do Rio. Os dois mosaicos foram remontados no Museu de Lagos,
sendo o primeiro associado a uma porção de estuque pintado originário de um dos
compartimentos da Boca do Rio para representar uma divisão romana típica.
Entre os dias 24 e 26 de Setembro de 1934, o mesmo arqueólogo
regressa à praia da Boca do Rio para prosseguir
com as explorações, direccionando os
trabalhos para a zona do compartimento de onde tinha
extraído o mosaico. Encontra um tesouro constituído
por 19 moedas de bronze e uma estatueta de um Eros em
ferro forrado a bronze. Do mesmo local já o
seu conterrâneo algarvio tinha recolhido uma figura representando
a Fortuna.
Em 1938 dava entrada no Museu de Lagos um recipiente cerâmico
com outro tesouro monetário composto por
mais de mil moedas. A ocultação destas moedas, que
não deve ter acontecido antes dos primeiros anos do século V d.C., reflecte a época
de insegurança vivida em toda a Hispania.
Das intervenções
arqueológicas de Estacio da Veiga, Santos Rocha e José Formosinho na Boca do
Rio resultou um conjunto significativo de artefactos. O espólio
obtido nas escavações de Estacio veio a ser depositado no Museu Arqueológico do
Algarve, criado nas dependências da Academia de Belas Artes de Lisboa no
ano de 1880 e extinto escassos meses
depois. Santos Rocha
entregou ao Museu da Figueira da Foz
tudo o que recolhera. Já Formosinho depositou no museu da sua cidade (Lagos) o fragmento de mosaico e os
restantes materiais recuperados. A quantidade e variedade deste espólio
espelham bem a natureza deste sítio marítimo da época romana, que aclama uma indústria
conserveira que, negociando o peixe salgado e os preparados derivados a grandes
distâncias, praticaria, directa ou indirectamente, contactos com os maiores portos
da geografia mediterrânica. A qualidade dos fragmentos de cerâmicas finas de
importação ali encontradas atestam-no.
As escavações dos três
arqueólogos incidiram invariavelmente na frente marítima do sítio, área onde se
situavam os edifícios residenciais e termais, ficando por explorar a área que
lhes é anexa por trás, ou seja a parte industrial. Qualquer um dos três
arqueólogos tinha prévia noção da importância e da extensão dos vestígios arqueológicos
da Boca do Rio, admitindo as limitações das suas intervenções que, manifestamente,
teriam sido insuficientes para ficar a conhecer o sítio na íntegra. A falta de
meios foi o fundamento utilizado pelos três. O apelo a uma grande exploração
era na óptica de Formosinho a metodologia necessária para o local. Mas esses
trabalhos, abrangentes a todo o espaço arqueológico e desejados pelo arqueólogo
lacobrigense, nunca vieram a acontecer, sendo que durante cinquenta anos
perdeu-se o interesse pelo sítio.
O sítio só volta a ser
escavado em 1982, desta
feita por Francisco
Alves (ALVES, 1990/92 e 1997). Incidindo as
investigações em quatro locais inexplorados
da área
traseira da frente marítima, regista
três núcleos de
tanques de
salga e recolhe uma quantidade significativa de
materiais arqueológicos, entre estes utensilagem de
pesca. Esta
intervenção permitiu confirmar a natureza industrial
do sítio, já patenteada por Formosinho,
tendo
identificado, de forma inequívoca, as
primeiras cetárias. E apesar de algumas das
estruturas da frente marítima registadas
por Estacio
terem já desaparecido, foi
também possível identificar as que tinham sido
poupadas pelo
mar (ALVES, 1990/92).
Em 2003, foi necessária uma intervenção
de emergência
para levantar
uma sepultura e respectivo esqueleto deixados à vista
pelo recuo da falésia do morro dos Medos. Tudo leva a crer que se trata de um
dos enterramentos da necrópole referida por Santos Rocha (ROCHA, 1896). Nos finais
do mesmo ano, Adolfo Silveira Martins e João
Pedro Bernardes localizaram e registaram parte da sala K da planta de Estacio
e o que restava dos compartimentos nesta assinalados com as letras F, F' e
F''.
O primeiro arqueólogo,
dois anos depois e em colaboração com uma equipa americana,
levaria a cabo prospecções geomagnéticas e
subaquáticas das quais não se conhecem resultados publicados. Foi
necessário esperar mais cinco anos para que as estruturas visíveis à super superfície do
talude da praia fossem finalmente registadas, tanto as encontradas já
derrubadas pela acção destruidora do mar, de carácter
mais urgente, como as que estavam nos sítios originais e para as quais o risco
de queda, ainda que mais reduzido, era efectivo (MEDEIROS, 2009 e 2010). A
metodologia seguida baseou-se no registo gráfico pelo desenho arqueológico e fotografia
dos muros dos diferentes compartimentos e na
descrição da morfologia e características construtivas dos muros.
Simultaneamente, uma
equipa de geólogos da
Universidade Göethe de Frankfurt, prospectou uma parte da área onde apareceram
os tanques de salga, tendo detectado anomalias magnéticas que
indicavam a presença de estruturas positivas (HAENSSLER,
2008). Com base na imagem obtida pela geofísica e nos desenhos das
cetárias escavadas por Francisco Alves, tudo leva a crer que essas anomalias correspondem
a alinhamentos dos muros que delimitavam os edifícios que albergavam
as cetárias. A confirmar-se tal cenário é fácil perceber porque é que três
das sondagens que F. Alves implantou aleatoriamente “caíram em cima” de três núcleos
de tanques. Não terá sido fruto do acaso mas sim da anterior constatação de que
aquela faixa de terreno, com cerca de 150 m de extensão, poderia estar repleta com
este tipo de estruturas (BERNARDES et al., 2008, p. 116).
O inverno rigoroso de 2009/2010 teve grande
impacto na destruição das ruínas. O recuo da linha de costa foi particularmente
evidente e em consequência disso, em Março de 2010, numa das visitas regulares
ao sítio, João Pedro Bernardes deu conta das consequências da abrasão marítima
ao descobrir parte de um pavimento de mosaico. No corte do talude, em frente
aos antigos armazéns, era visível uma linha de tesselas in situ, e
na zona de preia-mar, alguns fragmentos do rudus do ao
qual pertenceriam. Tratava-se de parte do pavimento correspondente ao desenho do
mosaico da planta de Estacio da Veiga que acompanhava o ângulo do corredor D e
que se prolongava ao longo do mesmo e do compartimento C. Com vista ao seu
salvamento, entre os meses de Julho e Agosto do
mesmo ano, teve lugar uma nova intervenção de emergência (BERNARDES &
MEDEIROS, 2011 e 2012). O mosaico, que já se encontrava muito destruído, foi levantado
por uma equipa especializada e ficou a cargo da autarquia local.
Os primeiros esforços
para a valorização e divulgação do
sítio arqueológico e da paisagem no qual este é inscrito devem-se a Francisco
Alves. Logo após ter escavado na Boca do Rio e reconhecido a sua importância
patrimonial defendeu a viabilização da musealização das estruturas pela criação
de um pequeno centro interpretativo (ALVES,
1997). Esta abordagem museológica abarcaria as estruturas romanas, os
restos do navio francês Océan, naufragado
ao largo da praia, as ruínas do Forte de
São Luís, a paisagem e a fauna e flora locais. Na época, o projecto assumia-se como
uma mais-valia turística, ambiental e cultural, perfeitamente adequada ao tipo
de turismo que se queria na região, mas nunca chegou a arrancar.
Além da relevância
patrimonial e paisagística, o vale da Boca do Rio é ainda importante por outro
motivo: a sua geologia. Foram feitas
sondagens e furos com o propósito de registar a estratigrafia do
paleoestuário, os sedimentos depositados pelo tsunami de 1755 e outros costeira.
Sabendo que o lugar ofereceu condições excepcionais como porto de abrigo para
embarcações, lugar de apoio à pesca e ao marisqueio e, provavelmente, para
extracção de sal, têm sido apresentadas
diversas candidaturas a programas de investigação científica. Concluído no final
de 2011, o projecto da Universidade do
Algarve – A Exploração dos Recursos Marinhos
Algarvios Durante a Época Romana –
foi o último a produzir conhecimento sobre o sítio.
Do conjunto de escavações
arqueológicas realizadas entre os finais do século XIX e o presente na Boca do Rio, no que à
organização dos espaços funcionais diz respeito, saltam à vista duas realidades bem distintas, à semelhança do que acontece nas villae: uma, habitacional,
localizada junto ao mar
e por isso já muito destruída, correspondente a um
conjunto de compartimentos de
habitação integrando termas e uma
área de armazenagem; outra,
industrial, desenvolvida nas
traseiras da primeira e onde se estabeleceram as estruturas fabris ligadas ao
processamento de preparados de peixe – as cetárias.
As cetárias, de formato
regular (quadrangular ou rectangular), serviam uma grande produção de salgas,
molhos e pastas de peixe, géneros alimentícios estruturantes da tradicional
dieta mediterrânica e muito apreciados na Antiguidade. Estas estruturas atestam
a existência de um complexo industrial centrado na exploração
intensiva de recursos marinhos e no posterior processo de transformação pela
conserva em sal ou fermentação controlada. Os compartimentos da parte
habitacional apresentam configurações construtivas muito
idênticas, com recurso a aparelhos calcários de corte regular e a
balastros irregulares obtidos na região. Entre as fiadas de pedra
surgem, incrustadas na argamassa dos muros, pedras mármore e
cerâmicas comuns, na maioria telhas e tijolos reaproveitados de antigas construções.
Estes elementos construtivos apontam na direcção de várias fases de ocupação
para o sítio, ainda que se desconheça a sua (des)continuidade. Por outro
lado, a inexistência de muros sobrepostos ou a orientação dos compartimentos não
permitem determinar momentos de adaptação, reestruturação ou ampliação de
espaços, salvo raras excepções. Os topos dos muros, rematados com argamassa alisada,
sugerem uma técnica construtiva em que a parte inferior é construída com pedras
argamassadas e a parte superior com taipa ou madeira. Esta solução
é comummente verificada em contextos arqueológicos mediterrânicos, sendo
certamente motivada pelas exigências climáticas da região e pela
abundância, rentabilidade económica e fácil manipulação das matérias-primas
utilizadas. Pequenos orifícios regulares identificados em
certos compartimentos, cotados a um nível superior ao do pavimento original,
podem estar associados a uma de duas funções: à captação/canalização das águas pluviais,
como é sugerido na estrutura do tipo cisterna; ou à sustentação de traves de
madeira de um estrado ou escadaria de acesso a piso superior, tendo em conta
estruturas habitacionais/termais de sítios com ocupações análogas, por exemplo,
Tróia. Os restos de estuque e de
mosaicos visíveis em alguns dos compartimentos da frente marítima são
reveladores de uma certa ostentação económica e estética, mesmo que para o
período romano o nível vivencial num complexo de salga de peixe não possa ser
equiparado ao das grandes villae latifundiárias.
De um modo geral, as
estruturas evidenciam um avançado grau de destruição, causado, sobretudo, pela
exposição aos mecanismos naturais que modelam a linha de
costa e pela ausência de políticas e de infra-estruturas de protecção, com excepção
para o referido registo ocorrido entre 2008
e 2009. Note-se que face às irreversíveis alterações morfológicas do talude
da frente marítima, são cada vez menos as estruturas resistentes.»
Postumamente
à sua morte (1891), Estacio da Veiga lega-nos, nas páginas do Archeologo Português, o
tripartido Volume V (1904, 1905, 1910) das suas Antiguidades monumentaes do Algarve, desta feita acerca dos tempos historicos. A 3.ª parte deste Volume V é publicada em
1910, contendo, entre a página 209 e a página 218, um importantíssimo conjunto
de informações arqueológicas relativas ao concelho de Vila do Bispo,
designadamente à ocupação romana na Boca do Rio.
Já no volume II das Antiguidades Monumentaes do Algarve - Tempos Prehistoricos (1887), Estacio da Veiga havia feito uma
breve referência às suas descobertas na Boca do Rio e às respectivas plantas e
desenhos, aguardando futura publicação na “pasta encadernada” à guarda do “seu” Museu Archeologico
do Algarve.
Seguem-se os excertos (textos, estampas e
plantas) das referidas publicações.
VEIGA, E. da (1887) – Antiguidades
Monumentaes do Algarve - Tempos Prehistoricos,
vol. II. Lisboa: Imprensa Nacional.
Budens
(Vol. II p. 312-313)
«A aldeia de Budens
está situada entre o extincto rio de Almádena e a ribeira da Zorreta. Todo esse tracto de terra fertil, comprehendido
entre duas correntes de agua, foi utilizado por todas as nacionalidades
prehistoricas
e historicas que no
Algarve ficaram caracterisadas. Houve alli notabilissimos centros de
população. Só o riquissimo
terreno de Budens, para ser explorado, como convinha, não exigiria menos de
seis a oito mezes de trabalho activo com quarenta operarios effectivos. Por um
lado a agricultura tem destruido os monumentos prehistoricos, a que chamam
sepulturas antigas, internamente revestidas de grandes penedos, e por outro
lado o oceano tem ido
conquistando n’estes ultimos quinze seculos uma enorme zona de terreno.
Veja-se a
descripção que
Silva Lopes dá das opulentas ruinas
de Budens na Chorographia do Algarve e veja-se na pasta
encadernada das plantas e desenhos dos meus descobrimentos, existentes no museu
archeologico do Algarve, a planta das ruinas que puz á vista junto á Bôca
do Rio, onde ainda achei
inteiros e sem a minima falha alguns preciosos pavimentos de mosaico de tão
primoroso lavor, como os mais perfeitos de quantos puz á vista nas celebres
ruinas de Ossonoba quando descobri a verdadeira séde e deixei patente uma parte
importante d’aquella tão nomeada
cidade de origem preromana.»
VEIGA, E. da (1910) –
Antiguidades Monumentaes do Algarve. Cap. V. Tempos Históricos. O Archeologo Português, Vol. XV, Lisboa: Museu Ethnographico
Português, pp. 212-218.
Antiguidades monumentaes do Algarve
(Continuação. Vid. O Arch. Port., X,
107)
CAPITULO V
Tempos historicos
«Uma grande cidade deve ter existido logo adeante da Praia da Salema, numa enorme área a que se dá o nome de Boca do Rio.
A ribeira de Bundens e o
obstruido rio de Almádena, reunindo-se junto ao serro de Ferragudo, parece terem
corrido para uma barra hoje areada, a que chamam Boca do Rio, determinada por dois montes propinquos ao mar,
um chamado do Forte, a leste, sobre o qual estão no flanco esquerdo as ruinas da fortaleza de
Almádena; o outro monte, a Oeste, chamado dos Médos, apresenta o assentamento de uma vasta povoação, deixando
observar grandes e nobres edificios arrasados e outros soterrados nos areaes, cuja esmerada
construcção e decorações artisticas se recommendam á observação e estudo dos que chegam áquelle solitario
escampado.
Apesar de entender que nada faria, dispondo de pouco pessoal, e de minguados meios,
ainda assim quis aventurar-me a uma tentativa de exploração, e procurei naquella
extensa praia o logar que tinha visto assinalado com muitos tanques de salga de peixe. Procedeu-se á excavação e não obstante ser mui limitada, como se vê na planta junta, deixou ella patentear varios edificios, que em
seguida descreverei, e bellissimos pavimentos de mosaico no mais perfeito estado
de conservação, como se mostra com as tres estampas
que seguem á da planta:
A Armazem da extincta companhia de pescarias do Algarve, construído na
sua totalidade sobre alicerces romanos, mostrando no ponto A' um proseguimento de
muro de casa que lhe foi contíguo. Mede de comprimento 11m,15 e de largura 7m,66.
A' O muro A', correndo no sentido do norte e na direcção da foz do rio de Almádena,
achou-se muito destruido; mas logo outras construcções proximas vieram indicar
que o flanco direito d’aquelle rio foi largamente habitado na epoca romana. A leste d’este muro e dos
armazéns A e B são copiosos os vestigios de construcções destruídas ou soterradas no areal.
Pode-se talvez demarcar a famosa povoação entre a margem direita da ribeira de
Budens e o flanco direito do rio de Almádena,
cujo
obstruido leito, com a designação de Lontreira, é cultivado de extensos
arrozaes.
B Armazem que a extincta companhia de pescarias do Algarve construiu sobre famosos
muros romanos, conservando-lhe no lado de leste uma piscina em plano alto, de
fórma hemicyclar, B', e junto ao muro uma
lavacra rectangular, B''. É este plano superior
coberto de mosaico. No ponto B"' observa-se ainda um
espaço rectangular com os angulos abatidos em curva concava e com alguns restos
do seu antigo fundo de mosaico, deixando perceber que mais uma piscina havia
naquella casa, separada da casa A pela estreita passagem de 1m,50 de
largura. A casa B mede de comprimento 8m,86 sobre 5m,92 de largura, tendo o rectangulo em que estão a piscina e a lavacra a largura de 2m,29.
C Casa de fórma triangular, com pavimento de
mosaico, tendo uma estreita passagem no angulo superior para o corredor D.
D Corredor com pavimento de mosaico igual ao
da casa antecedente, cuja extensão, ainda apreciavel, é de 24m,05, sendo a sua largura de 3m,52. Este corredor
dividia um grande estabelecimento de banhos em dois corpos distinctos, o
primeiro construido junto á praia, e o segundo em plano superior mais afastado
do mar. Acham-se destacados vestigios d’este grande edificio fronteiro ao
oceano numa extensão de 86m,67, havendo, entre as ruinas descobertas e
o mar, copioso alastramento de pedras bem trabalhadas e muitos fragmentos de
paredes, que o mar por vezes deixa ver envolvidos no seu fundo areoso em dias
de grandes tempestades, sem que todavia conste terem modernamente sido
observados os nobres edificios, que a companhia do Algarve diz terem apparecido
em 1715 e 1755.
E Na casa E ha uma abertura de
porta para o corredor D, e esta casa é quasi igual e contigua á casa E'. A primeira mede de
largura 1m,90 e a segunda 2m,1, sendo o comprimento de ambas lm,46. A casa E", tendo a mesma
extensão das antecedentes, a que é parallela, mede de largura 2m,90, mostrando no seu angulo do sul uma arruinada piscina F de fórma hemiciclar, tendo a sua fundura num plano inferior ao do pavimento
da casa. Do lado do mar ha outra piscina quadrada F", dividida da primeira
por um muro: ambas são revestidas de cimento romano.
F e F' Piscinas que já
ficam descritas.
G A casa G era separada da G' por duas piscinas: a do lado do mar com 1 metro de base e a outra com
1m,37. Mede a casa G 5m,90 de comprimento e 2m,90 de largura. A casa G está na maior parte destruida pelas ondas do mar, deixando apenas
perceber que tinha a mesma largura da antecedente. Mede 2 metros o seu
comprimento apreciavel.
H, H', H" Perpendiculares ao corredor D ha tres casas parallelas entre si. A casa H mede de comprimento
2m,90 e de largura 2m,64; a H' tem o mesmo
comprimento e 3m,00 de largura; e a H", com a mesma extensão das antecedentes, mede 3m,26 de largura, tendo destruídos
os muros do lado do mar.
I Junto á casa H'' descobri uma escada de 1m,42 de largura com um degrau de pedra lavrada para
o corredor D, e tres, ainda visiveis,
para uma já mal figurada passagem ou saida.
I' Passagem ou saida do edificio para a praia.
I" Muro do corredor, que parece ter proseguido no parallelo das
construcções do plano superior e formado o flanco do corredor D do lado do mar.
J Casa no mesmo plano inferior do corredor D, com pavimento de mosaico. Mede 3m,96 por 4m,65.
K Casa contigua á antecedente e communicada por porta central, com bello pavimento de
mosaico1. Mede o mesmo da
antecedente.
L M Casas de solo destruido, mostrando pela altura das suas robustas paredes
terem tido pavimento superior, deixam presumir que fossem hypocaustos. A casa L mede no lado não arruinado
4 metros e a casa M 4 metros por 3m,20.
N Restos de uma casa de pavimento destruido, que parece ter sido hypocausto.
O A casa N communica-se por uma entrada com a casa O; é de fórma hemiciclar e parece ter sido um laconicum.
P Restos de um tanque muito fundo; revestido internamente de cimento
romano, com os angulos abatidos em curva concava, deixando presumir pela sua
construcção, e por se achar em pleno alto, ter sido reservatorio de agua.
Q Restos de muros destruidos.
R Figura symbolica de bronze, parecendo estar de pé dentro de uma cesta (sic) ornada no bordo. Mostra-se nua desde o terço
superior das pernas até a cabeça, em que os cabellos, graciosamente repartidos ao
meio e seguros por um diadema, lhe guarnecem a fronte em marrafas onduladas e
vão reunir-se estendidos pelas costas.
Sobre o hombro esquerdo segura com a mão um vaso colmado de frutos, e
com a mão direita, estendido o braço junto ao corpo, um vaso de fundo estreito,
cuja boca tapa e esconde com o dedo pollegar. Do lado esquerdo do hombro
pende-lhe uma asa entreaberta e no direito nota-se o sinal de faltar a outra.
Na parte inferior da cesta ha um espaço ôco, que parece ter servido para sobre
um pedestal ser encimada a pequena estatua (pouco maior que o desenho), que poderia representar um signum, ou a imagem da abundancia, para ser venerada ou implorada como
protectora da riqueza. Achou-se esta bem modelada figura de bronze nas ruinas
dos edificios romanos da Boca do Rio, ou praia de
Budens, e me foi mui graciosamente offerecida pelo antigo e benemerito redactor
da Gazeta do Algarve, Dr. Augusto Feio Soares
de Azevedo. Tenho-a no museu do Algarve.
Foi este o modesto resultado da minha acanhada tentativa de exploração
na Boca do Rio, a que tantos autores modernos já se tinham referido com interessantes noticias;
o que mostra terem aquellas ruinas attrahido a attenção da gente sábia do
Algarve desde o começo do seculo passado.
Não devo eu occultar
aqui essas noticias, porque tudo póde concorrer um dia para que ali se emprehendam
explorações em grande escala e devida regra, que ponham á vista os primores
architectonicos e lavores artisticos dos edificios que o mar ainda não
arrebatou ao seu devastador dominio.
Silva Lopes refere o seguinte na
Chrographia
do Algarve, p. 222:
«Na costa e meia
legua a SE. está a fortaleza ele Almadena feita no tempo de Filipe III, sendo
governador do Algarve o Conde do Prado D. Luis de Sousa. Pelo ribeiro de agua
doce que ali desagua na praia, entrou o mar no dia do terramoto por espaço de
mais de meia legua, em altura de dez a doze varas, arrasando uns grandiosos
médãos de areia, onde estavam cincoenta ferros dos mais pesados pertencentes á
armação que ali se lança, os quaes arrastou a mais de um quarto de legua pela
terra dentro. Na resaca deixou descobertos na praia, á borda da agua, uns
grandes e nobres edificios, de que não havia memoria, nem tradição. Não se póde
determinar a sua extensão por estarem muito debaixo d’agua por uma parte, e na
outra bate-lhes a maré: indicão porém ter sido de grande povoação, porque pelo
lado da terra erão cingidos de um grosso muro de cantaria com outro de formigão
ou taipa por dentro, e algumas meias paredes de ladrilho com repartimentos em
quadro, continuando outros muitos e grandes alicerces. Para o nascente
appareceu uma grande calçada por entre paredes de boa cantaria com porta de
grades de ferro no fim, ao lado da qual se encontrou outra porta, com boca de
forno de cozer louça, que parece de templo; e subterraneo e ao nivel da terra
um grande tanque fundo com degráos, para o qual se encaminhavão tres canos por
entre muitas paredes, descobertos por cima, e por baixo tem ladrilhos com
grandes pastas de chumbo.
Pela parte do mar ha
grandes alicerces, paredes largas e compridas, rebocadas e pintadas de varias
côres. Por este lado ha uma estrada para esse edificio fabricado em volta
redonda, de boa pedraria, com suas columnas compridas de pedra marmore. Immediatos
estão varios aposentos, cujo solo é fabricado de muitas pedrinhas quadradas de
varias côres, e raras, tão bem conglutinadas, que custa a dividi-las.
Em alguns reboques
se descobrem algumas letras imperceptiveis; as que se acharão com mais clareza
são as seguintes:
TIROR – TIORIRA52
Pelos annos de 1715
se descobrio ali em outro impulso do mar um caes, junto a estes edificios, de
boa cantaria, com grandes argolas; e agora tornou a apparecer. O mar deixou,
onde era terra firme, um lago bastante largo, de que ainda não se averiguou o
fundo; nem com a enchente nem com a vasante se descobre a menor alteração.
Da outra parte da
foz do rio para o nascente está immediata a dita fortaleza de Almádena, que não
teve ruina consideravel.
O author da Memoria,
de que copiei esta descripção se inclina a crer que esta povoação fosse dos
Romanos (ou de seu tempo já existisse); porque aquelle tanque e canos mostram
serem de banhos, de que elles fazião muito uso; e o que mais tira as
duvidas são os caracteres das letras, e achar-se nas ruinas uma moeda de cobre
de Nero Augusto. Ainda elle se remonta a maior antiguidade, lembrando-se que
seria antes aqui a fundação do templo de Hercules, do que no cabo de S.
Vicente, onde não ha praia. Difficil he, senão impossível, averiguar quem fundaria esta povoação e como se chamava. Talvez fosse
a antiga Budea
ou Bude, de que tomaria nome a presente aldeia de Budens? Ignoro o tempo que estiverão descobertas aquellas ruinas, e
quando tornaram a desapparecer. O informante era, como disse, medico em Lagos, duas leguas d’este sitio; e he muito verosimil
que, fazendo uma relação tão miuda dos estragos e successos do terramoto no
Algarve, não deixasse de examinar, por si, estando tão perto, o que affirma, e
que relata em sua fé».
O medico de Lagos, a que se refere Silva Lopes, era mui provavelmente o sabio Dr. Dymas Thadeo de Almeida Ramos, autor de
importantes escritos.
Não deixa de ser um tanto singular a ideia, que a mais de um escritor occorreu, de ter sido a antiga Budea ou
Bude a grande população da Boca do
Rio, e que d’ella derivara
o nome á aldeia de Budens.
O cura Ricardo Alvares Themudo, na relação official que deu em 1758 dos estragos causados pelo terramoto e diz:
«Na occasião do terramoto de 1755 junto á fortaleza de Almadena, sahindo o mar do seu curso lançando fóra as
areias de hua pequena praya q.
havia junto a hua limitada abertura por onde entra a maré, á qual chamam o rio da Almadena, se descobrirão fundamentos de avultada povoação, que
continuava para a parte do mar, pois no abrir das ondas se divisavão a montes as pedras soltas de destruidos edifícios
que com o continuo dos tempos
submergirão as aguas; e na pequena parte que perto das ondas as areias
descobrirão vi, e observei muitas
pedras de cantaria bem fabricadas, e principios de edificios, que ao parecer e modo guardavão a Povoação
das innundações e marés naquelle
tempo; e hoje se acha tudo coberto de area como antes, e se prezume ter sido hua antiga cidade de Buda,
d’onde tomou o nome esta
freguesia de Budens, mas disto não vi escritos». Diccionario Geographico, Ms. existente na Torre do Tombo.
O P.e Luis Cardoso, no t. II, impresso, do seu não
concluido Diccionario Geographico, não impugna esta inadmissivel presunção de
ser Budua representada pelas ruinas de Budens; pois diz:
«Por baixo do logar de Budens, ao poente, havia uma torre antiga, do tempo dos mouros, em que
hoje está um moinho de vento, em cujo sitio se diz foi a cidade de Bude nos tempos antigos».
Sabiam muito pouco aquelles sabios.
Querer situar Budua na costa do Algarve,
equivale a desconhecer tudo quanto se sabe d’essa cidade.
Budua, e não Budea, ou Bude, ficava entre Helvii (Elvas) e Emerita (Merida) sobre a margem direita do
Guadiana; e por isso a muita distancia do
Promontorio Sagrado. Outra deve ser a etymologia de Budens.
A respeito de Budua diz Cellario na Geographia Plenior, liv. II, p. 60: «Recedunt a colonia in
occasum quae in Olisiponensi itinere, Emeritam directo, memorantur, Plagiaria, Budua, Ad septem Aras».
Era esta a linha itineraria de Budua, como confirma Antonino.
Que cidade era então aquella, que o oceano arrancou ás nossas vistas, subvertendo-a na sua grande
maioria e soterrando-a nas dunas e
médões de areia noutra parte ainda muito importante, mas que nunca chegará a ser explorada em quanto a
nação queira sacrificar ás conveniências politicas
dos governos o que deve á sciencia e á civilização.
Não ha duvida alguma que houve uma grandiosa cidade entre a Ponta de Sagres e a bahia de Lagos, ou
mais restrictamente entre as ribeiras
de Almádena e de Benaçoitão.
Uma conclusão poderá talvez aventurar-se: quando se elaborou o Itinerario de Antonino, já tinham
cessado de existir todas as cidades pertencentes
á região do Promontorio Sagrado.
Antonino não cita nenhuma. Grandes cataclysmos as arrasaram para sempre. Tal é o fatal destino de todas as grandezas!
Seria finalmente fastidioso
o descrever aqui os objectos que extrahi da minha exploração na Boca do Rio. Todos estão ordenados no museu. O que se póde mui presuntivamente entender é que todas as
officinas de material de barro cozido, já indicadas para os lados de Sagres, foram estabelecimentos que
se instituiram para acudir ás necessidades de tantas construcções grandiosas. No peculio da
Boca do Rio ha muitos exemplares de pintura mural, numerosos fragmentos de vasos de vidro e de muitos
marmores. Um fragmento de telhão horizontal tem a seguinte marca do fabricante:
G. AEMILI
SCRIBONI
Continue, pois, a ficar sem nome essa rica cidade até que um dia surja
um monumento epigraphico que o designe, já que a
incuria dos homens não tratou de perpetuá-lo. E possível que as sepulturas do
Serro das Alfarrobeiras possam concorrer para a resolução d’este problema.»
1 Os pavimentos de mosaico
da casa J e da casa K foram desenhados á vista por minha mulher Amélia Claranges Lucotte Estacio da Veiga. Estão
exactos.
2 Não entendo este
letreiro, escrito em letras que ora parecem romanas, ora mescladas de
caracteres peninsulares: julgo-o mal copiado. O Dr. Bübner tambem não o
entendeu; limita-se a dizer: «Ultrum antiqua sit necne nescio». Inscr. Hisp. Lat., t. II, p. 4, Berlim 1869. Marca
porém este logar na carta 1.ª da Lusitania.
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